FOLHA DE SP - 01/08
Calote na Argentina decorre de uma decisão exagerada da Justiça dos EUA aplicada a um país há anos sob gestão econômica trôpega
A Argentina tornou-se outra vez inadimplente, agora de modo um tanto involuntário. Seu governo, porém, não é inocente das mazelas atuais: descrédito internacional e renovada crise doméstica.
A mais nova dificuldade deve-se à disputa com os credores de 8% de sua dívida repudiada em 2001, os "holdouts" ou "abutres", que compram, por valores menores, dívidas não honradas.
A Justiça dos Estados Unidos, sob cuja lei o débito foi contratado, decidiu que o governo argentino tem permissão de honrar seus compromissos com os credores da dívida renegociada apenas se também arcar com o que deve aos "holdouts" ou "abutres" --o que o país vizinho não pode fazer.
Como está impedida de pagar os juros da parte renegociada, considera-se que a Argentina entrou em calote, embora negociações tardias possam reverter a situação.
Apesar das décadas de má política econômica, a sentença judicial cria precedente capaz de levar a impasses mais graves. Reconheceu-se que credores minoritários têm o poder de impedir a reestruturação de dívidas de governos, não importa o mérito da renegociação.
Não estranha, assim, que o próprio governo americano tenha considerado exagerada a decisão da Justiça de Nova York. Mesmo empresas estão sob o abrigo de lei que permita sua recuperação judicial.
Em que pese o extremismo, vale lembrar que apenas a partir de 2013 a Argentina procurou refazer suas relações com o mercado financeiro internacional, de onde está praticamente afastada desde 2001.
O país está em recessão, fruto em parte de populismo econômico. Sem crédito, a Argentina corre o risco de crise de pagamentos, pois o comércio exterior quase não fornece os meios de bancar despesas internacionais. Tomar empréstimos no mercado nacional custaria juros altíssimos, dados a desordem e o histórico de calotes.
A primeira reação ao inadimplemento, em todo caso, foi moderada. Não é improvável, porém, que a tensão política e alguma redução no escasso financiamento externo restante provoquem desvalorização da moeda e, assim, inflação e recessão mais intensas.
A redução no consumo e as medidas de contenção de deficit comerciais já diminuíram as vendas brasileiras para a Argentina em 20% na primeira metade de 2014.
O impacto, como ficou óbvio neste ano, será mais sentido na indústria automobilística. A crise argentina, ainda assim, não deve tirar mais de poucos décimos do crescimento brasileiro, também minado por uma gestão econômica trôpega --embora nem de longe tão inepta como a da Argentina sob o governo Kirchner.
Nenhum comentário:
Postar um comentário