O GLOBO - 22/07
Ao fim de seu livro 50 anos esta noite , da editora Record, que lança no Rio hoje, o ex-governador de São Paulo, ex-ministro, ex-candidato à Presidência da República duas vezes e atual candidato ao Senado José Serra define bem sua maneira de ver a ação política: A democracia que convive bem com as iniquidades nos convida ao conservadorismo sem imaginação. Por outro lado, a permanente crispação das demandas, que não cuida de conservar o que se conquistou, conduz ao impasse. De algum modo, é o equilíbrio dessas duas forças que nos faz avançar .
Trata-se de relato pessoal dos anos pré-ditadura militar, quando teve atuação política no centro dos acontecimentos com apenas 22 anos, como presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), e do duplo exílio, do Brasil para o Chile e de lá, com a derrubada de Allende, novamente exilado em Roma e nos Estados Unidos, onde se formou doutor em economia em Princeton no Institute for Advanced Study.
Anos mais tarde, reler sua tese nunca publicada sobre a política econômica do governo Allende fez surgir um ser fantasmático, aplicado, intelectualmente veemente, que se esfalfa para entender um trauma histórico e seguir em frente - eu mesmo outrora e agora .
É interessante aprender como foi forjada a personalidade política de Serra, reconhecidamente um amante dos detalhes ( onde o diabo mora ), um administrador rigoroso e obstinado. O que mais o incomodou no exílio não foi estar longe de casa, mas a impossibilidade de voltar e a falta de documentos. Por isso, recusou-se a devolver um passaporte brasileiro que recebeu por equívoco do cônsul em Santiago, Octávio Guinle, que acabou sendo punido pelo erro.
A UNE tinha papel fundamental nos anos que precederam ao golpe de 1964, e é surpreendente constatar como um estudante de 22 anos partilhava de conversas com o então presidente João Goulart e outros políticos renomados da época, a ponto de discutir com o presidente a nomeação do ministro da Fazenda, e com o deputado Leonel Brizola, o então governador Miguel Arraes, e outros, as ações políticas, tendo mais noção do que muitos de que a crise política se avizinhava.
Em reunião política nos dias tensos que antecederam ao golpe, Serra ouviu da boca de Jango: Não vou terminar esse mandato, não. Não chego até o fim . A percepção da fragilidade do esquema político e militar do governo esteve sempre presente na atuação daquele estudante, que fez um discurso incendiário no Comício da Central, e depois do golpe acabou no Uruguai ao lado de Brizola, os dois exilados, recebendo oferta para participar da luta armada contra os militares que tomaram o poder, que descartou com piada.
Em todo o seu relato, Serra revela sua obsessão pelos detalhes: Enquanto andava, morbidamente me perguntava se a bala do fuzil, além de derrubar-me, doeria , referindo-se à saída do Estádio Nacional do Chile, onde vários presos políticos foram assassinados nos primeiros dias do golpe militar que instalou a ditadura.
Serra não mudou sua visão sobre o que aconteceu no Brasil, continua convencido de que o governo Goulart não preparava um golpe, e que o receio do perigo comunista foi incutido na população pela direita, com a ajuda dos meios de comunicação da época para que o golpe fosse viável.
Acusa a CIA de ter atuado no golpe militar, seja financiando o Instituto Brasileiro de Ação Democrática com suas campanhas anticomunistas; ou grampeando o ministro da Guerra Jair Dantas dentro de seu quarto de hospital, como sua ação desestabilizadora do governo Allende. E lamenta que hoje exista mais intolerância no debate político do que naquela época embora o conflito político ideológico daquela década fosse muitíssimo mais acentuado do que no Brasil de hoje .
É um belo documento histórico esse que Serra publica, comprovando o que ele afirma em certo momento: Em nenhum momento do desterro duvidei do meu propósito e destino. Tudo o que estudei lá fora teve este norte: preparar-me para uma presença exemplar na vida pública brasileira .
Nenhum comentário:
Postar um comentário