O GLOBO - 06/04
Um alemão me perguntou se adotamos toque de recolher nas grandes cidades, após o qual todo mundo se tranca e só sai de ambulância, camburão ou tanque
O título de hoje faz uma afirmação não muito original, mas inevitável. Não estou mais em Paris desta vez e, sim, em Berlim, cidade onde já morei e aonde volto sempre que posso, porque é das minhas duas ou três preferidas e vale muito a pena ser visitada. Quando o muro caiu, eu morava aqui. Um dos comentários mais frequentes entre os visitantes costumeiros era de que aqui, como em outras capitais europeias, a cidade já estava pronta. Ao contrário do Brasil, onde tudo parecia mudar de nome, endereço ou aparência, depois de uns poucos meses de ausência, aqui tudo estava no lugarzinho de sempre, desde o monumento grandioso à lojinha na esquina da Nürnbergerstrasse.
Não mais. É um escândalo. Espero que, quando fizer minha indispensável revisita ao Zoológico, ainda o encontre lá, com a mesma aparência e no mesmo lugar, até porque não deve ser fácil carregar elefantes e hipopótamos de lá para cá. Claro, era de se antecipar que, com a unificação da Alemanha, a cidade fosse mudar, mas isto me aparece um abuso. O restaurantezinho de nome italiano que ficava a poucos metros daqui virou uma espécie de antro ameaçador, em que dá um certo medo de entrar. Fechou até — acreditem! — aquele restaurante ótimo do EuropaCenter, na sobreloja, onde as garçonetes eram simpaticíssimas, falavam todas as línguas e conseguiam adaptar ao freguês todos os pratos do menu. Muito inquietante.
Mas não somente a aparência de Berlim mudou. Do ponto de vista brasileiro, agora há também notáveis diferenças. Não vim fazer palestras ou leituras desta feita, vim para bater perna mesmo, de maneira que não encontro plateias curiosas sobre nós, como de outras vezes. Parecem jazer no passado os tempos épicos em que eu era obrigado a discutir os índios que frequentavam nossos quintais no Rio de Janeiro e ser tido como deslavado mentiroso, por responder que não conhecia a Amazônia. Mas, se não há plateias para fazer perguntas interessantes, há sempre com quem trocar umas palavrinhas, sobretudo com motoristas de táxi, meus preferidos. Faz pouco tempo, o Brasil era lembrado com entusiasmo e admiração e Lula era frequentemente citado quase no mesmo tom.
Deve ser a Copa. Não sei que assombrações podem estar sendo divulgadas na imprensa, mas agora não se referem mais, com os olhos acesos, aos traseiros de nossas mulheres e a seu temperamento tão dadivoso, amplamente apregoados pelas agências de viagem, nem mesmo lembram o sol e o carnaval, nem mesmo cantam “ai, se eu te pego”. Agora querem saber se não vão ser assaltados dentro do hotel. Não fiz uma pesquisa de opinião, mas, pelo que ouvi, especialmente de Helmut, a quem já lhes apresento, a preocupação é essa. Em algumas coisas, mesmo os mais pessimistas têm dificuldade em acreditar, como os arrastões em restaurantes, mas do resto eles têm medo. Um deles chegou a me perguntar se adotamos um toque de recolher nas nossas grandes cidades, após o qual todo mundo se tranca a sete chaves e só sai de ambulância, camburão ou tanque do Exército, porque já viram pela televisão tropas de combate nos centros urbanos, do mesmo jeito que no Afeganistão ou na Síria.
Helmut, nome fictício que empresto a um motorista de táxi amigo meu, que faz ponto numa transversal do Ku’damm (e continua lá, Deus é grande), estava com planos de comparecer à Copa, mas agora se encontra meio dividido. A violência, contudo, não é o principal fator de sua dúvida, antes pelo contrário. Não temos grande intimidade, mas agora me ocorre que ele leva uma forte parecença com Peter Lorre, no papel do Vampiro de Dusseldorf. De qualquer forma, tivemos um diálogo digno de nota, enquanto eu procurava a lojinha onde costumava comprar bagulhinhos para levar de lembrança ao Brasil e que também sumiu.
— Eu vi outra coisa interessante sobre o Brasil, na televisão — disse ele. —Sempre vejo coisas interessantes sobre o Brasil. Nesta eu não acreditei muito, mas talvez você possa me dizer se é verdade.
— Qualquer coisa que se diga sobre o Brasil pode ser verdade, Helmut, você já deve saber disto.
— É, eu sei, mas isto... Bem, é o seguinte. Eu vi que o sujeito pode matar a mulher em casa, se arrumar, sair para dar parte na polícia, confessar, assinar um papel e voltar para casa na hora, sem problema, é isso mesmo?
— Não, que é isso, também não é assim.
— Ah, foi o que eu pensei. É porque tudo estava contado com detalhes e eu até vi as caras de uns dois que fizeram isso.
— Bem, a verdade é que pode acontecer. A lei brasileira é muito moderna. Mas não se mata tanto assim. Nesses casos mesmo, é porque o assassino não foi preso em flagrante, é réu primário e tem domicílio conhecido. Mas não fica impune, é processado depois. E, se for condenado, vai para a cadeia, como em qualquer outro lugar.
— Nessa reportagem, eles diziam isso. Mas ainda nenhum deles tinha sido condenado.
— É, demora um pouco.
— Muitos anos?
— Sim, a depender do caso, dos advogados e assim por diante.
— Grande país — disse Helmut.
— Como assim?
— Agora estou pensando em acabar minha velhice por lá. Sem aquela... Sem minha mulher, vai ser muito divertido — concluiu ele, com uma risadinha meio vampiro de Dusseldorf.
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