terça-feira, fevereiro 18, 2014

O Brasil executicentrista - ROBERTO ROMANO

CORREIO BRAZILIENSE - 18/02
O Estado, tal como o conhecemos, teve o apogeu nos séculos 16 e 17, a era do absolutismo. Desde então, sofreu mudanças rumo à vida democrática (com as revoluções da Inglaterra, ainda no século 17, e a norte-americana e a francesa no século 18). Mas logo o aparelho estatal rumou para a recusa da democracia e enrijeceu os mecanismos repressivos com a hegemonia do poder Executivo sobre os parlamentos e a Justiça. Napoleão inaugurou essa  maneira de governar, cuja evolução levou, no século 20, aos totalitarismos nazista, fascista, stalinista. Com o controle do Executivo sobre a sociedade, a política pouco a pouco se reduziu ao procedimento plebiscitário: as eleições deixaram de significar aprovação ou negativa cidadã aos projetos de política pública e se reduziram à tarefa de aprovar ou indeferir os mandatos do chefe de governo ou de Estado.
Com os braços postos em todas as governanças (econômica, social, esportiva, artística etc.), o Executivo se transformou na única fonte de recursos públicos, nominalmente responsável pela segurança, saúde, educação, transporte, lazer. Bem ou mal, no Brasil herdeiro do executicentrismo absolutista se conseguiu, até os anos 50 do século passado, harmonizar, de algum modo, a prática plebiscitária e a administração dos assuntos coletivos.

A partir de JK (com a simbólica construção de Brasília, que concentrou o poder estatal ainda mais num ponto geográfico), assistimos à vertiginosa passagem da ordem rural para a urbana. Com os 50 anos em 5 do juscelinismo e as estradas sob a batuta de empreiteiras, surgem aglomerados urbanos aniquilando o sertão. O Brasil deixa de ser uma esteira ao longo do Atlântico (a longa fila de capitais que vai de Manaus a Porto Alegre) e se transforma em uma terra mais densamento povoada.

No período ditatorial, a geração de estradas aumenta, bem como a migração de interioranos rumo aos grandes centros, conduzindo para as periferias massas cujo emprego e salários são precários e cujas reivindicações de políticas públicas ainda são incipientes. Mesmo assim, as tensões e o mal-estar trazido pelas aglomerações humanas geraram muitas lutas, quase sempre enfrentadas pela força física policial, com base numa justiça cujos representantes viviam a realidade anterior ao denso povoamento urbano pós-JK.

A maior condensação humana em centros médios espalhados pelo país trouxe, ao mesmo tempo, acúmulo inédito de carências na ordem pública (saúde, segurança, educação) e informação para a nova cidadania. Não por acaso, a ditadura tratou de censurar a imprensa, pois seus estrategistas perceberam o potencial da oposição que poderia ser erguida com setores urbanizados e com maior conhecimento da realidade. As eleições de 1974 marcam uma virada decisiva na vida do país. Mesmo sob forte propaganda do regime, as oposições venceram, inviabilizando a ditadura. A livre imprensa desempenha grande papel na virada.

Depois do regime civil e militar, o país patinou na economia e nas políticas públicas. A inflação, herdada do período autoritário, mostrou a força, tornando inúteis os planos que, desde o Cruzado até o Bresser, apenas atacavam os efeitos do processo inflacionário sem mudar a lógica do combate. O executivocentrismo plebiscitário, levado adiante sob Sarney e Collor, piorava o descontrole econômico e jogava as políticas públicas para o plano da mera propaganda eleitoreira.

O Plano Real conseguiu mudar a referida lógica, idealizado que foi sob um presidente interino que dele não dependia para vencer eleições. Além de atenuar a inflação, possibilitou a entrada, lenta no início, e cada vez mais acelerada depois, de imensas massas antes presas aos grotões das periferias. Tais massas passaram a exigir serviços públicos compatíveis com as suas carências, enfrentando a quase inatividade eleitoreira dos políticos com os programas que, em grande parte, eram apenas demagogia. O "fura-fila" imaginado por Duda Mendonça para captar os votos paulistanos é paradigmático, mas inúmeros outros artifícios retóricos poderiam ser referidos.

Resultado: com a máquina mastodôntica e burocratizada do poder federal, que concentra todas as políticas públicas nos palácios de Brasília, e sem verdadeira administração continuada em períodos não eleitorais (períodos que se tornam a cada dia mais curtos), as massas só encontram a propaganda diante de si, sem nenhuma solução digna do nome quando se trata de política pública. Os políticos que controlam estados e municípios não têm recursos financeiros e técnicos nem autonomia e competência para encaminhar problemas agudizados pela entrada das novas multidões no espaço urbano.

Pescadores de água turva (e como são turvas!) das mais diversas ideologias, como é o caso dos black blocs, colocam em questão o velho aparelho do governo dominado pelo ineficiente e caduco Executivo federal. Se a forma concentracionária do poder não mudar rumo ao federalismo de fato, multidões cada vez mais raivosas e desorientadas mostrarão aos oportunistas de sempre que a ilusão de mando é, a cada instante, mais frágil.

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