O Estado de S.Paulo - 08/02
Muito papel e muita tinta já foram gastos para discutir se a Igreja Católica deve ocupar-se apenas do "espiritual" ou se também lhe cabe interessar-se pelas questões mais concretas, referentes à vida do homem neste mundo. Não é meu propósito, nestas linhas, discorrer sobre essa controvérsia, que, a meu ver, está mal colocada: a Igreja de Cristo, neste mundo, é formada de pessoas e instituições concretas, histórica e socialmente situadas, com as quais ela exerce sua missão.
O papa Francisco, na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho, 2013), aponta algumas questões às quais a Igreja precisa dar especial atenção se quiser cumprir bem a sua missão. Entre outras, destaca que a evangelização tem uma clara dimensão social e não pode contentar-se somente com a realização de ritos religiosos, sem repercussão na vida social.
Da adesão à fé cristã, quando verdadeira, decorre um compromisso social amplo e a adoração de Deus implica necessariamente o reconhecimento da dignidade de todo ser humano, amado e querido por Deus, bem como o esforço em prol da fraternidade e da justiça. Reconhecer Deus como criador e origem última das criaturas leva ao respeito por todas elas.
Até pode parecer novidade que o papa Francisco diga, de maneira tão explícita, que a evangelização possui uma dimensão social e o anúncio do Evangelho de Cristo tem inevitáveis implicações comunitárias. Francisco, no entanto, retoma conceitos já consolidados no ensino social da Igreja, com a clareza e a simplicidade que lhe são próprias, citando documentos de Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI, dando-lhes novos destaques.
De fato, nada é mais antigo e originário no cristianismo do que os dois amores inseparáveis: a Deus e ao próximo. Desde os primórdios os cristãos aprenderam que "a fé sem as obras é morta em si mesma"; e que as obras da fé incluem sempre a prática do amor fraterno, a atenção aos pobres, aos doentes e aos desvalidos, sem exclusão de ninguém. Paulo, ao se confrontar com os outros apóstolos, para verificar se a sua pregação estava em sintonia com a deles, recebeu apenas esta recomendação: que não descuidasse dos pobres.
Não se trata apenas de levar assistência e socorro, sem dúvida indispensáveis para aliviar necessidades pontuais e imediatas dos pobres, mas de "ouvir o clamor dos pobres e socorrê-los", de para promover a sua inclusão social. Nem é missão reservada somente a algumas pessoas: é de todos os membros da Igreja, atuantes nas mais diversas áreas de suas competências profissionais e responsabilidades sociais. O papa convida a ir além de alguns atos esporádicos de generosidade e a formar uma nova mentalidade, uma cultura, superando o excessivo individualismo para pensar e agir solidariamente, tendo sempre presente o horizonte da comunidade e da grande família humana (cf. n. 188s).
"Precisamos crescer em solidariedade", ensina o papa Francisco, também no que diz respeito às relações entre os povos, nas quais a exacerbada defesa dos direitos individuais, ou das vantagens dos povos mais ricos, passa por cima do direito mais elementar à vida digna de populações e nações inteiras que continuam a viver na miséria e sem chances de sair dela. De maneira clara e corajosa, Francisco retoma o conceito da "destinação universal dos bens deste mundo" para todos os seus habitantes: "Respeitando a independência e a cultura de cada nação, é preciso recordar-se sempre de que o planeta é de toda e para toda a humanidade".
Usando palavras de seu predecessor Paulo VI (Octogesima adveniens, 23,1971), Francisco apela para os povos mais ricos, tocando numa questão melindrosa: "É preciso repetir que os mais favorecidos devem renunciar a alguns dos seus direitos, para colocar, com mais liberalidade, os seus bens ao serviço dos outros" (n. 190).
A opção preferencial da Igreja pelos pobres não tem motivação ideológica, nem implica a exclusão dos que não são pobres: ela tem sua origem e inspiração no exemplo e nas palavras do próprio Jesus e deverá ser traduzida em ações concretas de solidariedade para com os doentes, os pobres e todos os deserdados dos bens deste mundo; mas também na promoção da justiça social e no cuidado de todo ser humano despojado de sua dignidade. Acaso a Igreja poderia deixar de fazer isso e de convidar todos a fazerem o mesmo, como caminho para o bem comum e a paz?
A evangelização seria incompleta se não tomasse em consideração a constante interpelação recíproca constante entre o Evangelho e a vida concreta, pessoal e social (n. 181). Francisco adverte aqueles que, dentro ou fora da Igreja, pensam que deva a religião ficar reservada apenas aos espaços da vida privada: "Ninguém pode exigir de nós que releguemos a religião para a intimidade secreta das pessoas, sem qualquer influência na vida social e nacional, sem nos preocuparmos com a saúde das instituições da sociedade civil, sem nos pronunciarmos sobre acontecimentos que interessam aos cidadãos" (n. 183).
Bem, e por que motivo os católicos não fazem isso? Não é que falte quem já o faça, mas, é verdade, temos muito pela frente! Entre o "dever fazer" e o "fazer" vai uma grande distância. Nada é automático na condição humana, nem também na vida dos crentes em Deus. O cristianismo apela, por princípio, à consciência e à liberdade humanas; graça divina e autonomia do homem são dois polos que precisam encontrar-se.
A palavra do papa Francisco, dirigida aos membros da Igreja, longe de ser triunfalista, é um chamado à realidade e à atitude consciente; a "alegria do Evangelho" é um bem para a comunidade humana inteira, não podendo ficar retida no coração dos fiéis: ela é "boa nova" para todos. Para os pobres, em primeiro lugar.
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