O ESTADÃO - 08/02
Grandes e complexos personagens não faltam em nossa literatura, mas somos bem modestos em matéria de personagens que ressurgem e se perpetuam na obra de um autor. Criamos um Brás Cubas, uma Diadorim, um Paulo Honório, mas não criamos um Sherlock Holmes, um James Bond, um Poirot, um Maigret, um Jeeves, um Harry "Rabbit" Angstrom. Nesse quesito perdemos feio para os gringos.
Também entre nós as tentativas mais bem-sucedidas se deram na ficção policial: o Dr. Leite de Luiz Lopes Coelho, Mandrake (Rubem Fonseca), Espinosa (Garcia Roza), e, em clave humorística, Ed Mort, o inspetor Clouseau de Luis Fernando Verissimo. O segundo só não é o primeiro na ordem cronológica. Presente nas narrativas de Fonseca desde 1969, Mandrake, dublê de inspetor de polícia e detetive particular, sujeito cínico, sarcástico, mulherengo, dado a falar difícil até quando o assunto é banal, é o nosso mais afamado private eye.
Mandrake é apelido (do advogado criminalista Paulo Mendes), e uma indisfarçável, embora nunca explicitada, homenagem ao homônimo mágico dos quadrinhos, que, por seu turno, teve o nome inspirado na mandrágora, planta cujos atributos afrodisíacos, alucinógenos, analgésicos e entorpecentes a transformaram em sinônimo de feitiçaria. Tudo a ver com o bas fond em que o detetive carioca circula.
Nosso mágico sem cartola, cuja derradeira aparição na obra de Fonseca (Mandrake - A Bíblia e a Bengala, de 2005) acaba de ser relançada pela Nova Fronteira em versão eletrônica, já era um quarentão ao estrear num dos contos (O Caso de F.A.) de Lúcia McCartney. "A cidade não é aquilo que se vê do Pão de Açúcar", vai logo dizendo, dando a entender que o Rio de Janeiro por onde habitualmente circula não se presta a cartões-postais. Ele próprio nasceu e passou a infância numa zona central da cidade sem appeal turístico.
Esbocei-lhe um perfil biográfico, juntando dados pinçados das peripécias que protagonizou em Feliz Ano Novo (Dia dos Namorados), O Cobrador, A Grande Arte e Mandrake - A Bíblia e a Bengala. Ele merece o esforço.
Menino retraído e taciturno, Paulo perdeu a mãe muito cedo e foi criado pelo pai, pobre imigrante português do ramo de secos e molhados. Ingênuo, custou a duvidar da existência de Papai Noel e engoliu todas as histórias que lhe contaram sobre Zwig Midgal, associação de judeus dedicada ao tráfico de escravas brancas que, entre o final do século 19 e o início da Segunda Guerra Mundial, importou judias jovens e pobres da Europa para entregá-las à prostituição, as tais "polacas" que seu avô traçaria nos puteiros da Lapa e em breve serão personagens de uma minissérie da Globo, dirigida pelo cineasta argentino Daniel Burman.
A infância foi dura e a juventude não menos sofrida. Lavou chão e espanou balcões, vendeu meias, mourejou de sete às sete, emendando, sem jantar, com o curso noturno. Moleque, divertia-se cuspindo na cabeça dos enfarpelados passantes que a caminho do Teatro Municipal desfilavam debaixo do sobrado na rua Evaristo Veiga, quase esquina da 13 de Maio, onde morou na adolescência. Mais inteligente que estudioso, formou-se em segundo lugar no curso de Direito e revelou-se um advogado dedicado, íntegro e idealista; até que, cansado das petições, defesas e burocracias da lei, concentrou quase toda sua energia no que mais gosta na vida: sexo. Para desespero de seu sócio, Leon Wexler, com quem divide um escritório, de cuja janela, dali sim, avista-se uma paisagem de postal: o mar da baía, o parque do Flamengo e o Morro da Urca.
Wexler (ou Weksler, como é grafado na última aparição de Mandrake) é um profissional sério, experiente, misto de mentor e pai adotivo de Paulo Mendes. Cuida exclusivamente das causas cíveis, que não rendem quiproquós policiais, e só se mete nos casos de extorsão, chantagem e latrocínio assumidos por seu protegido se este correr algum perigo de que o safo delegado Raul não possa dar conta. Há muito acostumou-se ao humor ácido e ao pernosticismo intelectual do amigo, mas sua ginecomania ainda o desconcerta. "Gostar de mulheres dessa maneira é ainda mais neurótico do que odiá-las", jogou-lhe na cara o paternal parceiro.
Mandrake alega que as mulheres sempre o provocam e aos assédios não consegue opor resistência. A cicatriz que exibe na testa desde a adolescência foi causada, involuntariamente, por uma mulher. Ela, boasuda, passava na rua, na direção oposta, ele se virou para admirar-lhe o traseiro e enfiou a cara num poste. As demais - Marina e suas nádegas apetitosas, Gilda, Lili, a impulsiva Bertha Bronstein, sua sparring no xadrez, a nabokoviana Ada, Helô, a doida que tirou de um sanatório em Botafogo, etc., etc., etc. - só lhe deixaram marcas no coração e na memória. Se tanto.
Comer por via oral também gratifica seu penchant epicurista. Frugal no café da manhã (laranjada e queijo cavalo), não teme abusar das calorias no almoço, preferencialmente em restaurantes portugueses do centro do Rio e sempre regado a vinho luso (Periquita, Acácio, Terras Altas), que até em jejum é capaz de beber. Já teve uma cozinheira que no almoço lhe preparava franguinho com farofa, rosbife com champignon e salada de aspargos frescos, complementados por um Grão Vasco, "esvaziado" com queijo Serra da Estrela e torradas. Fechando o repasto, o indefectível charuto, se possível cubano: os Havanas Médio e Supremo, Partagas D-4.
Como o gosto por vinhos, charutos, mulheres, restaurantes portugueses e tantas outras coisas, sua felinofilia se confunde com a do próprio escritor, que também teve uma gata siamesa chamada Elizabeth, vesga de olhos azuis, a quem amou mais do que a qualquer mulher, como prova o breve e comovente relato (Betsy) que abre a coletânea Histórias de Amor.
Detesta dormir ("uma fraqueza") e qualquer distração - ler, ver televisão ou filme, ouvir música - lhe tira o sono. Sofre de insônia desde garoto. Chegou a passar dois meses inteiros fingindo que dormia. "Esse menino precisa dormir", alertou o pediatra, "dormir para sonhar." Só que ele sonhava acordado, imaginando o que seria na vida, indeciso entre o legionário Beau Sabreur, o galante aristocrata Pimpinela Escarlate e Pardaillan, o cavaleiro errante de Michel Zévaco cujas aventuras, aliás, também encantaram o pubescente Jean-Paul Sartre. Como é do conhecimento público, Paulo Mendes acabou se transformando, mesmo, foi no Philip Marlowe carioca.
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