O GLOBO - 07/01
Há quatro meses o ministro da Justiça promete decisão rápida sobre o que a presidente decidiu há 19 meses: dar asilo ao senador que denunciou o avanço do narcotráfico no governo Evo Morales
Entrou no ar a Rede Coca, grupo de emissoras de rádio dos produtores bolivianos de folha de coca. Criada pelo Estado, foi inaugurada na semana passada por Evo Morales, que há sete anos acumula a Presidência da República com o comando da federação dos cocaleros.
A Bolívia, sob Morales, virou o terceiro maior produtor mundial de coca e cocaína — a liderança é disputada entre Peru e Colômbia. O país cultiva 27 mil hectares de folha e exporta para o Brasil quase toda a produção de cocaína.
Hoje, em Nova York, o presidente boliviano vai à ONU defender a legalização da coca. Morales é do tipo que se supera cada vez que fala: “Sinto que a folha de coca vai enterrar o capitalismo”, disse ao entregar a terceira emissora da Rede Coca, em Yungas, arredores de La Paz. É um caudilho à maneira de Manuel Melgarejo, o ditador (entre 1864 e 1871) que se via como instrumento de Deus “para realização de seus misteriosos desígnios, relacionados com o destino da nobre porção da humanidade que povoa a Bolívia”.
Alcoólatra, Melgarejo considerava Napoleão “superior a Bonaparte” e abria reuniões ministeriais com um grito: “Silêncio, canalhas!” Numa crise financeira, ordenou a invasão do vizinho Peru para “levantar fundos com empréstimos forçados”. Recuou depois da ressaca.
Sóbrio, Morales se vê como uma espécie de missionário da coca. Acha mais importante “defender os direitos da Mãe Terra que defender os direitos humanos”. Mantém uma visão peculiar sobre o papel feminino na sociedade: “Quando vou às vilas, todas a mulheres ficam grávidas e em suas barrigas escrevem: 'Evo Cumpre!'”
É candidato à reeleição, em outubro, com apoio do governo Dilma Rousseff. Pouco afeita à política externa, a presidente abraçou Morales e se meteu em um atoleiro político do qual não consegue sair há 19 meses.
Numa tarde de segunda-feira, 28 de maio de 2012, o líder da oposição boliviana, que denunciava o crescimento do poder do narcotráfico no governo Morales, entrou na embaixada em La Paz e pediu abrigo. Dilma relevou os temores do Itamaraty, e deu instruções autorizando o asilo, conforme a tradição e a boa prática política.
Não se sabe o motivo, mas em seguida o governo resolveu deixar o senador Roger Pinto Molina trancado num quarto improvisado da embaixada. Passaram-se 452 dias. Em junho de 2013, cansado do silêncio sorridente de Brasília, o diplomata Eduardo Saboia achou que o senador boliviano estava em perigo e o conduziu a Corumbá, em carro da embaixada.
Dilma não gostou e trocou de chanceler. Enviou Antonio Patriota a uma estadia paradisíaca na ONU, com direito a mordomias como residência no Upper East Side, em Nova York, entre Madonna e Woody Allen. Mandou para o limbo os diplomatas de escalão inferior (Eduardo Saboia, Manuel Montenegro e Marcel Biato, ex-embaixador), deixando-os sem funções e sob processos sigilosos — até hoje inconclusos.
Por fim, submeteu o senador boliviano a um novo tipo de humilhação: o inferno burocrático administrado pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Há quatro meses ele promete uma decisão rápida sobre aquilo que a presidente decidiu 19 meses atrás: conceder asilo a um político ameaçado por denunciar o avanço do narcotráfico no governo Morales. Se e quando acontecer, talvez seja notícia na Rede Coca.
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