FOLHA DE SP - 17/01
Uma vertente do humor opera no limite dos valores aceitos, confrontando gosto e ideologia do público
Toda vez que um humorista se mete em uma controvérsia, surge alguém para dizer que o problema não são as piadas ofensivas, e sim a falta de graça do autor. É mentira. Ninguém vai aos jornais falar mal de humoristas respeitosos, tenham eles talento ou não.
É mais ou menos o caso do arcebispo de São Paulo, d. Odilo Scherer, em relação a um especial de Natal do grupo Porta dos Fundos. "Será que isso é humor?", ele escreveu no Twitter. "Ou é intolerância religiosa travestida?" No vídeo, assistido 4,4 milhões de vezes até a última terça (http://migre.me/hr3jz), os esquetes citam Jesus, Deus, drogas, Luciano Huck, um carteiraço na Santa Ceia e crucificados que usam Bepantol nas feridas.
A indagação do cardeal tem história. De um lado da briga estão os que não consideram a liberdade um valor absoluto. Entre eles, cristãos que propõem boicote e medidas legais contra o Porta dos Fundos.
Um argumento que deve ser usado no processo é clássico: deve haver restrições ao discurso contrário à democracia ou que faz apologia do crime. O humor ofensivo não teria conteúdo análogo, pois pode incentivar a intolerância (e a violência) contra determinados grupos?
Nos Estados Unidos, uma das grandes derrotas judiciais dessa corrente se iniciou com uma sátira religiosa --uma falsa peça publicitária, publicada na revista do pornógrafo Larry Flynt, em que o pastor Jerry Falwell conta que perdeu a virgindade com a própria mãe.
Retratado num bom filme de Milos Forman, e tendo como objeto a imagem de figuras públicas, o caso discutiu a Primeira Emenda --que trata de liberdade de expressão-- e ajudou a firmar princípios como o de que o humor pode ser ruim, burro, grotesco, repulsivo. Mas proibi-lo seria dar ao Estado a prerrogativa de uma escolha --ignorar a revista, não assistir ao vídeo-- que é individual.
Daria para acrescentar que uma vertente importante do humor, como uma vertente importante da arte, opera no limite dos valores aceitos, confrontando gosto e ideologia do público. Pense em piadas que reproduzem estereótipos racistas. Elas podem confirmá-los ou, por meio da exacerbação irônica ou recurso semelhante, fazer o contrário.
De um modo ou outro haverá reações como a de d. Odilo. Que poderiam ser mais complexas de se lidar, digamos, trocando-se os personagens. Se o cardeal é um alvo até fácil para o establishment cultural progressista e laico --na Vila Madalena ou no Leblon, ninguém tem pena de um homem branco e poderoso na hierarquia da igreja--, o que aconteceria se o indignado fosse muçulmano, judeu, gay, mulher?
Uma resposta possível teria algo de casuístico. Certos grupos são menos ou mais vulneráveis de acordo com as circunstâncias. O Brasil é um país com passado recente de escravidão. Gays ainda são agredidos na avenida Paulista. Mulheres sofrem o diabo nas classes pobres. Já os cristãos, diferentemente do que ocorre em outras partes do mundo, são maioria e nunca foram perseguidos por aqui.
O problema desta abordagem caso a caso, que dependeria de uma sensibilidade política sempre discutível para dirimir conflitos, é ser discriminatória por princípio.
Às vezes, a democracia faz ginástica para se adaptar a distorções do gênero --caso das cotas em universidades, que têm como recompensa anunciada a diminuição de desigualdades históricas.
Tentar fazer esse tipo de reparo na esfera do humor, permitindo-se zombar da fé cristã, mas não de outras crenças e grupos, e considerando que tudo se resume a meia dúzia de piadas (que, ademais, passam pelos filtros de qualidade e conveniência da sociedade), já está além do razoável.
Restam, então, as alternativas a partir de uma regra única e universal. A primeira, que proíbe tudo o que parecer incômodo por via das dúvidas, é pior: o cerceamento do discurso do humorista, do artista ou de qualquer cidadão tende a limitar o debate público e formar uma audiência infantilizada.
A segunda alternativa, com todos os problemas que acarreta, é a da liberdade. Nos Estados Unidos, além do caso Larry Flynt, o modelo venceu batalhas difíceis e legitimou uma tradição de comediantes incisivos, de Lenny Bruce e Andy Kaufman a Louis C.K. e Chris Rock, e uma prática de confronto e oxigenação das ideias que fortalece a democracia. Se o Porta dos Fundos acabar nos tribunais superiores, seria bom que o mesmo acontecesse no Brasil.
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