O Estado de S.Paulo - 28/12
Maquiagem, botox e remendos são os principais componentes do chamado modelo de crescimento em vigor há uma década, aperfeiçoado nos últimos três anos e pelo menos tão eficiente quanto a pedra filosofal procurada pelos alquimistas. Segundo se dizia, essa pedra, ou fórmula, poderia transformar em ouro metais menos valiosos. Com o tal modelo, o governo converteu um déficit primário de R$ 6,2 bilhões num superávit mensal de R$ 28,8 bilhões, um recorde. A mágica foi realizada basicamente com a inscrição de duas receitas atípicas - R$ 15 bilhões do bônus de concessão do campo de Libra, no pré-sal, e R$ 20,4 bilhões de pagamentos do novo Refis, o programa de parcelamento de impostos atrasados. Com esse resultado em novembro, a administração federal terá uma chance muito maior de fechar o ano com R$ 73 bilhões de resultado primário, o dinheiro destinado ao pagamento parcial dos juros da dívida pública.
As contas de novembro do governo central foram apresentadas pelo secretário do Tesouro, Arno Augustin, principal auxiliar do ministro da Fazenda, Guido Mantega, no setor de alquimia contábil. Mas o modelo composto principalmente de botox, maquiagem e remendo serve também para embelezar a inflação e as contas externas. Por sua aplicação variada, esse instrumento sintetiza as propriedades da pedra filosofal e do Bombril, o das mil e uma utilidades. O noticiário do dia a dia tem confirmado suas virtudes.
Neste ano o Brasil acumulou um superávit comercial de US$ 1,02 bilhão até a terceira semana de dezembro, segundo as últimas informações do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. No fim de novembro o saldo acumulado era um déficit de US$ 93 bilhões. O resultado continuou fraquinho nas duas semanas seguintes, mas na terceira foi registrada mais uma exportação de plataforma de exploração de petróleo e gás, no valor de US$ 1,15 bilhão. Pronto. De repente, a conta comercial passou do vermelho para o azul. Mas essa plataforma, como outras exportadas neste ano e em 2012, nunca deixou o País, porque a operação é meramente contábil e seu propósito é a geração de um benefício fiscal.
Neste ano, até a terceira semana de dezembro, as exportações dessas plataformas proporcionaram receita de US$ 7,73 bilhões, 351,41% maior que a obtida com o mesmo produto um ano antes. Terá sido um surto de sucesso comercial ou uma emergência na conta de comércio exterior? Outro detalhe notável: em 2013, essas plataformas foram a maior fonte de receita com as vendas externas de manufaturados.
Automóveis de passageiros apareceram em segundo lugar, com US$ 5 bilhões, e óleos combustíveis em terceiro, com US$ 3,46 bilhões. Em seguida apareceram partes e peças para veículos e tratores (US$ 3,1 bilhões) e aviões (US$ 3,02 bilhões). Mas todos esses produtos foram para fora. Muitos brasileiros devem ter voado, no exterior, em aviões da Embraer. Muito mais difícil será encontrar uma daquelas plataformas.
Sem essa operação quase milagrosa, o saldo comercial até a terceira semana de dezembro teria sido um déficit de US$ 6,71 bilhões. O resultado teria sido menos mau, é claro, se parte das importações de petróleo e derivados tivesse sido contabilizada - corretamente - em 2012, em vez de só aparecer neste ano (esta é mais uma bizarria das contas brasileiras). Mas esses produtos de fato foram comprados e chegaram ao País. Se essas compras tivessem entrado nas contas de 2012, o saldo comercial do ano passado teria ficado abaixo dos US$ 19,4 bilhões oficialmente registrados.
Problemas da Petrobrás, incluída a necessidade de importação de óleo e derivados, também têm relação com o uso do modelo de botox, maquiagem e remendo. Preços dos combustíveis têm sido politicamente contidos, há anos, como parte do esforço para administrar os índices de inflação (coisa muito diferente de combater as pressões inflacionárias). Essa política impôs perdas à empresa, reduziu sua geração de caixa e diminuiu sua capacidade de investir com recursos próprios. Além disso, prejudicou os investimentos na produção de etanol, porque a contenção dos preços da gasolina se refletiu na formação de preços do álcool. Depois de muita pressão, os novos dirigentes da Petrobrás conseguiram autorização para elevar os preços, mas em proporção inferior à necessária. A depreciação das ações da empresa, nas bolsas, é consequência dessa e de outras interferências políticas na administração da estatal.
O modelo de enfeite foi aplicado amplamente no esforço de controle dos índices de inflação. O governo forçou a redução das tarifas de eletricidade ao impor às concessionárias um novo esquema de renovação de contratos. Também manobrou para retardar os aumentos de passagens de transporte público e para anular, no meio do ano, os ajustes concedidos.
Esse esforço produziu algum efeito imediato. Os indicadores de inflação subiram mais lentamente durante alguns meses, mas a quase mágica logo se esgotou. Os índices de preços ao consumidor voltaram a aumentar cada vez mais velozmente a partir de agosto. O IPCA-15, uma espécie de prévia do Índice de Preços ao Consumidor Amplo, a medida oficial de inflação, acumulou alta anual de 5,85% até dezembro. Se o resultado final do IPCA será igual ou inferior ao do ano passado (5,84%) só se saberá no começo de janeiro, quando conhecidos os números de todo o mês de dezembro. Mas, na melhor hipótese, a inflação será muito parecida com a do ano passado e as pressões continuarão fortes em 2014.
Nenhuma pessoa informada leva a sério o tabelamento de preços, o disfarce das contas externas e o enfeite das contas públicas. Operações atípicas podem gerar ganhos fiscais imediatos, mas corroem a credibilidade de quem governa. Com botox e maquiagem, alguns números ficam mais apresentáveis para os ingênuos. Paras os outros a cara do governo se torna cada vez mais disforme.
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