O Estado de S.Paulo - 25/12
Eu sinto falta das minhas infantis ansiedades natalinas. A gente ouvia: "amanhã é dia de Natal". E todos pensávamos no que íamos "pedir" a Papai Noel. Foi no Natal que primeiro exercitei o desejo aberto que singulariza e transporta ao sublime e à vergonha - quase sempre aos dois. Por causa disso, todo pedir é sempre atropelado pela insegurança. O que podemos pedir - eis a pergunta não dita - a quem realmente "dava" os tão esperados "presente de Natal" nas famílias de classe média que viviam dentro de orçamento apertado, como sempre foi o meu caso?
Se Papai Noel não existia, pois era o nosso próprio pai, como saber o presente possível? Todos nós (éramos cinco meninos e uma menina) sabíamos que o tal "saco de Papai Noel" era enorme e como Papai Noel era gordo e muito rico. Tão rico quanto os Estados Unidos que o haviam reinventado para a minha geração dos anos 30 e 40. Mas sabíamos também que o seu lugar era um lugar fora do nosso alcance. Como escrever uma carta num inglês que nos era desconhecido e remetê-la para o Polo Norte se correio não era lá essas coisas?
Eu que, felizmente, tive um pai até ser pai, sabia que papai estava ao meu alcance. Mas o tal Papai Noel levantava uma paternidade estacional. Ele só aparecia no final do ano e, a seu lado, surgiam também as figuras santificadas e concretas do Menino Jesus, de São José e da Virgem Mãe. Um amigo dizia que era preciso escolher entre gastar movido pela "propaganda" ou rezar num verdadeiro e escrupuloso Natal. Eu até hoje fico impressionado com a fácil moralidade de plantão.
A Sagrada Família era pobre mas Papai Noel tinha um trenó puxado por renas - estranhos veados grandes que, além do mais, voavam. Ademais, ele entrava nas casas pela chaminé. Eis um detalhe que completava o seu exotismo, porque as casas onde morávamos não tinham chaminé - tinham cafuas e porões. À ansiedade dos presentes, sempre aquém do meu desejo, havia a dúvida porque, afinal, éramos "crianças" e Papai Noel pertencia ao universo dos "grandes". E os adultos sabiam de coisas secretas, como a tal cegonha que, no meu caso, durante sete ou oito anos, trouxe, embrulhado numa fralda, um irmãozinho que me roubava carinho, atenção e espaço...
Camelos, cegonhas e chaminés eram elementos que compunham o mistério dessas figuras periódicas.
Ao escrever essas recordações natalinas, descubro porque, quando visitei o Cairo, Egito, para tomar parte numa ambiciosa conferência de antropologistas, usei a oportunidade para observar os camelos. Diante das pirâmides, eu olhava e perguntava sobre os camelos. Tocava-os, admirava sua capacidade de resistir a sede e tinha curiosidade sobre suas corcovas. Camelo ou dromedário? Uma ou duas corcundas? Eis uma pergunta que não quer calar diante de certas pessoas, sobretudo dos que me governam. E foi assim que, diante da velha Esfinge, eu edipiana e estupidamente paguei para dar uma volta num velho camelo e, mais que isso, tirei uma fotografia. O guia ria e repetia "Lawrence da Arábia", mas eu estava vivendo um dos reis Magos...
Do mesmo modo e pela mesma lógica, essa também ligada ao meu amigo e companheiro de toda a vida, um rapaz chamado Édipo, jamais perdi a fascinação pelas chaminés que estudei, medi, admirei e olhei com fascinação nas casas europeias e américas. O fogo dentro de casa era uma contradição na minha vida de brasileiro cuja família vinha de uma Manaus, de uma Salvador e de uma Niterói nas quais o calor era "de matar" e o risco de algo "pegar fogo" era constante. Como, pois, ter essas chaminés com um fogo caseiro que servia para aquecer, quando só falávamos em ventilação e sonhávamos com o hoje rotineiro e transformador "ar condicionado"?
Papai Noel descia ou entrava pela lareira e eu jamais deixei de espiar escondido para o interior tenebroso das lareiras americanas. E se o bom velhinho fosse o amante da dona da casa, como questionou meu ciumento pai diante da estupefação de seus irmãos e cunhados? Mais que isso, como descer pela chaminé sem se sujar, conforme estabelece uma famosa e intrigante parábola judaica?
O fato antropológico, porém, é que o fogo da lareira contrasta somente em parte com o da cozinha. Os dois se fundem. E produzem uma fumaça humana reveladora de vida. Pois a fumaça que tinge os céus já escuros e frios dos invernos gelados que hoje eu conheço tão bem, seja no norte ou no sul, é o triunfo do calor que resiste ao frio imutável do infinito. Parece com o fósforo lutando inutilmente com o quarto escuro no qual vivemos.
E assim é o Natal. Uma noite de luz na imensa escuridão de nossas vidas. Uma pausa para reconhecer nos próximos o seu amor e a sua paciência para conosco. As rotinas realçam mais o feio e o raso do que o belo e o profundo. Mas o Natal dos "amigos ocultos" e das trocas de presentes redime o outro que está em todos os nossos próximos e, quem sabe, dentro de cada um de nós.
Feliz Natal!
Um comentário:
Essas datas sempre foram muito curtas. Escolhidas para dar presentes. Poderiam ter escolhido para casamentos, ou para obter assinaturas para uma petição de alguma causa publica. Nunca esteve assente a inclusão das crianças e a figura de Papai Noel para ganhar e dar presentes. A festa de fim de ano das empresas quis criar um retrato do Natal em família, envolvendo as pessoas, na suposição de assemelha-lo a família. Escolhem-se as datas de viagens para visitar os pais e outras vezes juntar a família. Ali os santinhos de pau oco renunciam a qualquer hospedagem da caricatura do mal. Era o irmão malvado e ateu que pregava a inexistência de Deus exatamente em tais dias sagrados. Por uma sugestão mal traçada não era possível nem brincar com o mal. E crescia a abstinência de todo o Mal quando os irmãos presenciava nessas santas viagens duas irmãs revirando suas mágoas, onde eles próprios perdiam as memórias dos confrontos recíprocos. As cidades viram vitrines enfeitadas querendo exaltar a data. Como na Sagrada família, a intenção pra lá são caricaturas velhas e conhecidas, como nos shoppings inventados só para algumas categorias de gente. Solteiros, solteiras, sem teto e sem terra, o contingente não contado pode experimentar a qualquer momento a sugestão de certa nostalgia. Essa situação fictícia foge à lógica se se doa a essa criança danadinha uma genialidade de coração só possível La pelos anos 2o30, quando com a injeção de um chip de dados inteligentes, no nascimento o infante já disporia de tamanha façanha. Tem que se dar à fuga de um nascimento...
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