sábado, novembro 02, 2013

Sobre jornalismo, história e biografias - LEONARDO CAVALCANTI

CORREIO BRAZILIENSE - 02/11
O processo de formação de uma imagem é longo, mesmo para os artistas. Para uma pessoa se tornar fã incondicional de alguém, é preciso mais do que letras ou melodias. Gente se identifica com atitudes, gestos, sejam eles libertários ou conservadores. Os admiradores de Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque perderam o prumo nas últimas três semanas. Cadê a voz que os representava no cenário artístico, político e histórico? Na real, o constrangimento é que tem ditado as regras da controvérsia sobre a censura prévia às biografias, que nada mais é do que a censura da história. É mais ou menos o seguinte: "Desculpe aí, meu ídolo, mas vou ter de criticá-lo". Ninguém fica lá muito confortável. 
Volto ao tema das biografias porque me parece que se deve voltar a ele quantas vezes for necessário. O que está em jogo é a liberdade de expressão e de contar histórias, por mais que os nossos artistas cada vez mais confundam e, na última aparição em vídeo, tentem se mostrar contrários à censura. Tudo se torna mais grave quando o tema é maior do que a proibição a biografias. Até onde se percebe, a desculpa para privacidade pode valer para censurar qualquer texto, incluindo aqueles produzidos no jornalismo diário ou na academia. Sim, então do que falar dos perfis de políticos e de personalidades feitos por jornais e revistas ou mesmo das teses preparadas nas faculdades de história, sociologia ou qualquer outra? Até onde vai a proibição de publicar tais informações? 

Paralelo 
A partir do que a entidade Procure Saber defende, é possível fazer um paralelo com o jornalismo e com a academia. Primeiro, porque não é de todo impossível que alguém um dia use os mesmos argumentos dos nossos ídolos para tentar barrar a publicação de um simples perfil feito por um repórter. Segundo, porque os melhores biógrafos atualmente são jornalistas, como Lira Neto (Getúlio e Padre Cícero), Fernando Morais (Olga e Chatô) e Mário Magalhães (Marighella). Há gente ruim de apuração ou mal-intencionada, com uma estrutura ideológica e partidária por trás? Sim, tem hoje e terá amanhã. Mas a esses cabe o processo judicial e, mais grave, a insignificância do erro intencional, o desrespeito com o próprio leitor e o desmerecimento ao longo do tempo. Mas essa é outra história. É ficção e não jornalismo ou mesmo um trabalho de determinado biógrafo, um historiador na essência. 

Como exemplos de historiadores, podem ser citados o pernambucano Evaldo Cabral de Mello (Nassau) e o norte-americano Benjamin Moser (Clarice). O direito à informação é maior do que qualquer tese em defesa da privacidade, que, nesse debate das biografias, está posta de maneira equivocada. A história de artistas como Chico Buarque e Caetano Veloso se confunde com a própria história de um país. E um país apenas tem identidade ao abrir a própria história, sem censura. É falso o argumento que os biógrafos buscam devassar a vida de um artista por simples desejo. Ninguém está aqui a defender violações de documentos ou quebra de sigilos telefônicos, por exemplo. O trabalho de um biógrafo, historiador ou jornalista é de pesquisa formal, uma apuração profunda. 

Aparição 
O vídeo em que Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Gilberto Gil (cadê Caetano e Paula Lavigne?) aparecem para defender as próprias biografias é mais uma maluquice da tal entidade Procure Saber, que colocou Chico Buarque na maior roubada da vida. Há uma confusão de declarações, misturadas para dar sentido ao inexplicável. O mais desnorteado é Gil. "Quando nos sentimos invadidos, julgamos que temos o direito de nos preservar e, de certa forma, preservar a todos que de alguma maneira não tem como nós temos o acesso à mídia, ao Judiciário, aos formadores de opinião", disse o baiano. Sinceramente, é difícil entender quem, se não os próprios integrantes do tal Procure Saber, precisaria ser preservado. Os que não têm acesso aos formadores de opinião? Gil e a sua turma, sim, têm acesso a tal grupo, mas conseguiram convencer pouca gente ao entoar o discurso torto contra as biografias. 

Reparação 
Por fim, parece mais do que razoável incluir mais temas ao debate, principalmente com a proximidade da audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF) para discutir o tema. Em vez da proibição das biografias prévias, ampliação do direito à reparação nos casos de ofensas, por exemplo.

O debate sobre a censura aos livros  tem poucas chances de minguar. Trata-se da liberdade de expressão e do ofício de repórteres, contadores de histórias e acadêmicos. Para os mal-intencionados, a reparação judicial nos casos de ofensa

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