O GLOBO - 02/11
São frequentes as decisões que impõem algum tipo de censura judicial, ou penalizam pessoas que transmitem ideias ou informações que incomodam os poderosos
A novidade no debate sobre as biografias não autorizadas foi o recuo do grupo de artistas que compõe o movimento Procure Saber. Até então, o grupo defendia a necessidade de prévia autorização do biografado ou de seus descendentes, prevista no Código Civil. Porém, em vídeo recentemente divulgado, artistas do grupo disseram que não consideram mais indispensável a obtenção desta autorização, mas que, por outro lado, tampouco abrem mão da proteção da sua privacidade. Eles declararam confiar no Poder Judiciário para que se alcance um “ponto de equilíbrio” entre os direitos em conflito.
A mensagem do vídeo é dúbia, mas tudo leva a crer que a nova posição do Procure Saber coincide com a de alguns juristas, que sustentam que deve caber ao Poder Judiciário avaliar, em cada caso concreto, a possibilidade da publicação das obras biográficas não autorizadas, ponderando as liberdades de expressão e informação com os direitos da personalidade da pessoa retratada. A solução, conquanto aparentemente sedutora, é insatisfatória.
Infelizmente, o Poder Judiciário brasileiro, com a notável exceção do STF, não tem um histórico de respeito à liberdade de expressão. São frequentes as decisões que impõem algum tipo de censura judicial, ou penalizam pessoas que transmitem ideias ou informações que incomodam os poderosos. Neste ponto, a cultura dominante no Poder Judiciário ainda não se deixou penetrar suficientemente pelos valores da Constituição de 88.
Em tal contexto, se a liberação de biografias depender de julgamentos casuísticos dos juízes, baseados em critérios fluidos como o da “seriedade” ou caráter “fofoqueiro” da obra, o desestímulo à elaboração e publicação de trabalhos do gênero persistirá. Afinal, poucos escritores vão querer dedicar o seu tempo e energia à empreitada diante de tamanho risco de censura judicial; poucas editoras terão a ousadia de publicar obras que poderão, logo depois, ser recolhidas das prateleiras. A maioria certamente vai preferir buscar a autorização prévia dos biografados ou de seus herdeiros, para evitar problemas futuros. Com isso, persistirá o predomínio das biografias de “chapa-branca”, em que os episódios mais negativos ou constrangedores das vidas das pessoas retratadas são eliminados ou apresentados de forma “generosa”. Mais do que os artistas e veículos de comunicação, continuará perdendo a sociedade, privada do acesso à informação e à cultura, e impedida de desfrutar a plenitude de um gênero artístico precioso.
O “ponto de equilíbrio” nesta questão é outro e pode ser extraído claramente da Constituição. A publicação das biografias tem de ser assegurada, independentemente de autorização de quem quer que seja. Porém, nos casos de exercício abusivo da liberdade de expressão, há responsabilidade civil pelos danos causados aos direitos de personalidade da vítima. Em nosso sistema constitucional, restrições judiciais à publicação ou veiculação de obras biográficas sobre pessoas públicas só se justificam em hipóteses absolutamente excepcionais, como quando as informações sobre os fatos narrados sejam obtidas de forma ilícita. É o que ocorreria se a autor se valesse, por exemplo, de gravações telefônicas clandestinas ou de correspondência privada furtada.
Em breve, o STF deve apreciar esta questão, pois os preceitos do Código Civil que criam embaraços à publicação de biografias foram impugnados na corte. Espera-se que, mais uma vez, o tribunal cumpra a sua missão de guardião da Constituição e das liberdades democráticas, banindo de vez a censura privada ou judicial das obras biográficas.
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