O Estado de S.Paulo - 16/11
A arqueologia procura ver nas habitações escavadas como eram nossos antepassados, como evoluímos, quais eram nossos costumes secretos. Cientistas de chapéu e colete de couro fuxicaram a intimidade de "antigos nós" sem pedir licença. Escreveram tratados e biografias não autorizadas, interpretaram nossa cerâmica, pintura rupestre, adorno. Até nossos lixos fuxicaram. Paparazzi com autorização e financiamento do mundo acadêmico.
O que descobriram, além de que sabemos desenhar bisões?
A cidade representa a transição do homem neolítico para o agricultor. Uma cidade só era possível com comida e água abundante. No começo de tudo, o homem morava perto do trabalho. Construiu cidades próximo ao trabalho. As primeiras nasceram na Mesopotâmia, que tem a maior reserva de água doce do planeta.
Recentemente, descobriu-se que o vilarejo mais antigo da humanidade, Göbekli Tepe, construído há 12 mil anos, fica na Turquia. O arqueólogo alemão Klaus Schmidt começou a escavar em 1994. Primeiro achou um templo com pilares em forma de T.
Por que começamos a construir? E por que na Turquia?
Porque foi onde houve a mutação de uma gramínea chamada trigo, que proporcionou a confecção do pão, fácil de armazenar e transportar. O homem começou a construir cercado por aquilo que o alimentava, trigo selvagem. Como bem sabe todo português: a humanidade se desenvolveu graças aos padeiros.
Hoje, olhando os lançamentos imobiliários das cidades congestionadas e amedrontadas, se vê a união de casa, área com lazer de um clube e anexo comercial. Não é perfeito?
O homem mora e trabalha cercado pelo mesmo muro neolítico. Se diverte, se exercita e se liberta do que há de ruim nas cidades. Cultura? Uma rede de distribuição de filmes, peças, óperas, eventos esportivos e shows está disponível por banda larga. Tem as redes sociais, para fazer novas amizades e realimentar as antigas. Tem ensino à distância, para se aprimorar. Sair de casa? Pra quê?
Esquece calçadas, passeios a pé, comércio de rua, sorvete da esquina, banca de jornal, pipoqueiro, mamães com carrinhos de bebê, parquinho, mesinha de damas dos aposentados, quadra em que um filho pode jogar e conhecer um garoto de outro bairro ou classe social. Esquece as padarias.
Como o homem do neolítico, passamos a morar onde trabalhamos. Nas nossas bolhas. Em megacavernas. Eventualmente, em nosso SUV, visitamos outra caverna gigante, templo de compras: o shopping.
Somos mais saudáveis e viveremos com mais segurança. Mas a que preço?
*
Meu pai construiu prédios com o arquiteto Paulo Mendes da Rocha. Dava os nomes. Anunciava nos jornais. Até hoje, uma das coisas que mais gosto de fazer é ver anúncios imobiliários.
Não estou atrás da garrafa de uísque que algumas incorporadoras oferecem para aqueles que visitam lançamentos residenciais e comerciais - ou melhor, empresariais, afinal, não somos mais comerciantes, mas empreendedores. Para ganhar uma garrafa, é "obrigatório" passar pelo atendimento do corretor. E é válido apenas para as 50 primeiras pessoas que visitarem o plantão. O que não é problema para meus amigos bebuns, que vão direto do bar. Que farra...
Há anos que me debruço fascinado sobre os anúncios, apesar de já ter a chamada casa própria. Ver como as pessoas pretendem morar é um exercício de arqueologia contemporânea. Ver como pretendem morar na vizinhança, voyeurismo. Sem contar a inveja saudável de futuros vizinhos bem-afortunados (literalmente).
Uma revolução acontece entre as coberturas e o térreo. Lançamento de alto padrão não vem com uma simples portaria, mas com "porta cochère". Outros não são apenas condomínios, mas "condomínios resort". Armário embutido desapareceu junto com o tigre da tasmânia. O quarto de empregada foi extinto. Alguns apartamentos vêm sem o quarto, mas com um banheiro na área de serviço. Seria o banheiro da diarista? Ou melhor, da "femme de ménage"?
Aliás, prédios não se chamam mais prédios, mas torres. Alguns se chamam "residencial". Outros, "boulevard". Alguns têm varanda gourmet, o sonho de todo morador de prédio, digo, torre: terraço com churrasqueira.
Outros vêm com fechadura biométrica, serviço pay-per-use, piscina com fundo infinito, fitness center, que antigamente chamávamos de academia, e a última onda, um espaço dedicado a seu quatro patas, agora popularmente conhecido como pet, cujo nome varia: space dog, pet garden, pet place, pet care, pet walk, pet play, pet space.
A maioria dos apartamentos está menor. Recentemente, um lançamento de 18 metros quadrados foi avacalhado nas redes sociais. É o espaço de três metros por seis. Apertado, mas dá. Nos idos tempos, se chamava quitinete, de kitnet. É a medida do apezinho do famoso Bloco B do Copan, antes, terra de ninguém (sã), hoje, valorizadíssimo.
Há poucos anos, os prédios vinham com lounge. Já ficou démodé. Como a sauna. Pelo visto, ninguém mais quer aliviar tensões apertado sobre um tablado de madeira, sufocado por calor e essência de eucalipto, suando com vizinhos, síndico e subsíndico, relembrando a última reunião condominial.
Não se veem mais lançamentos de quatro quartos, como no boom imobiliário da classe média alta da década de 1970. As famílias diminuíram. Mas aumentaram o número de vagas para carros. Menos filhos, mais carros. Dá menos trabalho. Estamos ficando tão estranhos...
O mercado não dorme no ponto, se renova. A PDG lançou o produto "vem com tudo". Imóveis já decorados. Imóveis com móveis planejados. Compra o imóvel de um, dois, três dormitórios, e ganha o móvel, ganha sala, cozinha, quartos e banheiros. Sensacional. Por que não pensaram nisso quando comprei a minha casa própria?
Vou também inovar. Me associar a um site de relacionamento matrimonial, encontrar a cara metade do cliente, a outra face da laranja, através de um programa que calcula por algoritmo as afinidades dos proponentes. Que ganham, no meu futuro empreendimento imobiliário, sala, cozinha, quartos e banheiros, um beagle saudável sem o selo Royal, uma adega com vinho, uísque, vodca e saquê, um marido ou uma esposa! E um ano de ração grátis. Para o pet. Onde está o telefone do Mendes da Rocha?
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