O Estado de S.Paulo - 19/10
Parece um ouriço-do-mar. Não se sabe por qual ponta segurá-lo. Ele pica de todos os lados. Sua atitude é rude, ao menos quando fala com um ocidental. Ele tem um ar mais afável quando posa ao lado de um tigre da Sibéria que acaba de matar. Esses gestos não são inocentes. Eles revelam um dos grandes desígnios de Vladimir Putin, o senhor da Rússia, cada vez mais agressivo desde que retomou o comando do país após o período bufão de Dmitri Medvedev.
A Europa o irrita. Ele não perde uma chance de humilhá-la, de deixar claro que ela está fora do jogo e não serve para nada no destino do mundo. Algo demonstrado brilhantemente com a Síria. Durante meses, Putin paralisou o Conselho de Segurança da ONU, bloqueando qualquer intervenção, ao mesmo tempo em que concedia apoio incondicional a Bashar Assad.
Um belo dia, porém, e agarrando-se ao pretexto dos gases tóxicos utilizados pela Síria, ele "apitou o fim do jogo". Encontrou uma solução (limitada, é verdade, mas melhor do que nada) graças a uma conversinha com os Estados Unidos. E os europeus nisso tudo? Ora, que pena, eles foram esquecidos, mas isso é normal. Quando se trata de um assunto grave, trancam-se as "crianças" nos seus quartos e se acertam as coisas entre os "adultos".
Putin ganhava, assim, em dois cenários. Primeiro, ridiculariza a União Europeia e cada um dos países que a compõem, a começar pela França, coitada, que se achava bem situada para resolver a crise síria e ainda se pergunta o que aconteceu. Segundo, negociou tudo diretamente com Barack Obama. Em outras palavras, reproduzindo o sistema diplomático dos tempos deliciosos da Guerra Fria e da União Soviética: um mundo bipolar regido por duas superpotências.
Compreende-se melhor porque Putin se empenha em provocar fraturas e fissuras no interior da União Europeia. Ele detesta Bruxelas. Não compreende nada dessa democracia frouxa e indecifrável que prolifera na cidade-sede do Parlamento Europeu. Putin é um homem que reverencia o Estado. Ele conhece a Grã-Bretanha ou a Polônia. Não reconhece a União Europeia. Portanto, não poupa esforços para negociar diretamente com Berlim ou com Roma, mas não com o bloco como um todo. No plano econômico, como no político, Putin é um adepto dos acordos bilaterais, e não dos multilaterais. A vantagem: ele deprecia a União Europeia que tanto o irrita.
Outra ofensiva que vai no mesmo sentido: alguns Estados da extinta União Soviética se inclinam para a União Europeia. Está fora de questão que se candidatem a membros do bloco, mas gostariam de assinar acordos de cooperação com Bruxelas. Putin exerce uma forte pressão para impedi-los e utiliza a arma da chantagem: o fim das importações de vinho moldavo, de cereais ucranianos e ruído de botas perto da Geórgia, por exemplo.
É preciso dizer que Putin tem um plano. Ele gostaria de criar, em 2015, uma união aduaneira que incluiria Rússia, Casaquistão, Bielorrússia, Ucrânia, Moldávia, Geórgia e alguns outros pedaços caídos da União Soviética. Assim, se decifra melhor seu jogo brutal e sutil: recriar um imenso conjunto que, sem cobrir todo o espaço da antiga União Soviética, formaria, contudo, um reflexo, uma sombra dela. A ideia é poderosa, porque Putin, nesse ponto, não é muito diferente de seus incontáveis súditos. Mesmos os russos democratas que haviam desejado o fim da União Soviética têm uma nostalgia persistente, uma saudade de sua infância. Eles não se conformam que seu país tenha encolhido bruscamente.
Putin maneja com maestria o patriotismo dos russos, os sonhos de grandeza que os embalam há mil anos, seja sob os czares ou secretários-gerais do Partido Comunista. O projeto de fabricar uma espécie de Grande Rússia, que recobriria quase a geografia da União Soviética, seria sensível a todos os corações russos.
Os mais velhos teriam a impressão de voltar ao passado - uma formidável "fonte da juventude". Os mais jovens descobririam que um futuro se abriria para suas impaciências. E, para todos, a fibra durável do patriotismo recomeçaria a fazer ouvir sua música inebriante. /TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK
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