O Estado de S.Paulo - 19/10
Pelo artigo 20 da Lei 10.406 de 2002, que dá brechas para que biografados e herdeiros consigam na Justiça impedir a circulação de obras não autorizadas, o leitor não pode ler aquilo que não foi aprovado pelos citados.
Se o artigo atravessasse a fronteira do tempo, Aristóteles teria problemas para publicar a Poética. Herdeiros dos autores de tragédias e comédias citadas iriam processá-lo, para repor danos e repartir ganhos da obra impressa até hoje. Parte da obra de Shakespeare estaria embargada por herdeiros de Júlio César, Marco Antônio, Cleópatra, Ricardo II, III, Henrique IV, V, VI, VIII e membros do reino da Dinamarca, acusado de podre. Marx seria censurado por capitalistas ao expor suas contradições. Nietzsche, por zoroástricos e monoteístas, por afirmar que Ele morreu. Aliás, o Novo Testamento poderia ser questionado pelas famílias Iscariotes, Pilatos e Antipas, se a Galileia seguisse as leis brasileiras atuais. Freud enfrentaria um processo dos herdeiros de Sófocles por denegrir a imagem do protagonista da sua peça mais conhecida, Édipo Rei, e utilizar em vão e sem autorização os conflitos dramáticos, com alusões fantasiosas e nada empíricas.
Obras como Guerra e Paz, O Vermelho e o Negro, Os Sertões, O Velho e o Mar não sairiam do papel, já que retratam personagens reais. Autores como Gore Vidal e Tom Wolfe não existiriam. Apenas a absoluta ficção, invenção plena livre de influências e inspiração, sem dados ou conexões com a realidade, seja lá qual for, seria permitida. O problema é que ela não existe.
Cercear a liberdade de expressão, agredida desde a nossa fundação, por regimes monárquicos, republicanos, algumas ditaduras e até um parlamentarismo provisório, é traumático. A instabilidade política é um sintoma do cerceamento.
Proibir a publicação de biografias não autorizadas é, sim, censura. Paternalizamos o leitor, protegemos, como uma frágil criatura. Duvidamos da capacidade de duvidar. Duvidamos da capacidade de discernir a verdade do boato, o fato da infâmia.
A mentira é também parte da democracia. Conviver com ela amadurece um povo. Saber enfrentá-la o torna forte. Desconfiar do que se lê e escuta nos faz cidadãos. E já escutamos cada barbaridade...
Já disseram que Dilma, terrorista, assaltou bancos, atentou contra o patrimônio, para implantar um regime facínora que cometeu mais atrocidades que o nazista. Usava os codinomes Estela, Luísa, Maria Lúcia, Marina, Patrícia e Wanda. O delegado Newton Fernandes afirmava que era uma das molas mestras dos esquemas revolucionários. Um promotor a chamou de "Joana d'Arc da subversão". Foi eleita.
Que Lula, preguiçoso, amputou o próprio dedo numa prensa da Ford, para uma licença médica que deu a oportunidade de se aposentar ainda jovem e se engajar num corrupto movimento sindical que, se aproveitando da crise da indústria automobilística, mobilizou uma massa apolítica. Fundou um partido e governou o País com negociatas, como se estivesse numa saleta do sindicado de São Bernardo. Comprou um Airbus folheado a ouro, cujas fotos rodaram pela internet. Foi eleito e reeleito.
FHC, sedutor incorrigível, teve um filho fora do casamento com uma jornalista da Globo, que o serviço secreto transferiu para Portugal, fato que a imprensa submissa e aliada ao PSDB escondeu durante a campanha para presidência. Foi eleito e reeleito.
Tancredo sofreu um atentado. A jornalista Gloria Maria testemunhou e passou uma temporada na geladeira. Collor de Mello descobriu a infidelidade da mulher, pois ela anunciou estar grávida sem saber que o marido fizera uma vasectomia. Membros do clã Sarney são os maiores plantadores de maconha do Maranhão. Aécio Neves tem problemas com álcool. Luis Eduardo Magalhães tinha com cocaína. Serra não dorme e tem inúmeras contas anônimas nas redes sociais. Passa o dia pedindo a cabeça de jornalistas que o criticam. Todos eleitos e reeleitos pelo voto direto.
Curiosamente, o Projeto de Lei 3378/08, que modifica o artigo da Lei 10.406, é de autoria do deputado Antonio Palocci (PT-SP) e defendido pelo ministro da Justiça, José Eduardo Martins, do partido acusado de planejar bolivarianamente o controle da imprensa.
Quem já não ouviu uma dessas "verdades absolutas", espalhadas por pessoas que dizem ter escutado de uma fonte confiável, de alguém de dentro do sistema? Tem gente que jura de pé junto que o 11 de setembro foi armado e que o homem não pousou na Lua.
Homossexual? Muitos escondem. Raí se mudou para a casa do apresentador Zeca Camargo. Logo logo, assumirão a relação. Adotarão um filho? Aids? Milton Nascimento e Ney Matogrosso têm, segundo uma revista extinta da maior editora do País. Que já afirmou que fui "meio" viciado em cocaína, quando eu apresentava um programa para adolescentes, cujo blogueiro tem certeza de que pertenço à facção criminosa dos Petralhas, apesar de muitos tuiteiros me acusarem de vendido, já que me filiei ao PIG, Partido da Imprensa Governista, para quem trabalho há décadas, o que envergonharia meu pai. Leitores do mesmo blogueiro dizem que na verdade sou um coitado maconheiro que bateu a cabeça numa pedra e, além de paraplégico, fiquei xarope.
Raí nem conhece Zeca Camargo e processa a jornalista que divulgou. O DNA do tal filho de FHC, cuja foto uma revista independente colocou na capa, e se vangloriou de ser o único órgão de imprensa a ter coragem de expor escandalosa revelação, não bateu com o do suposto pai. Dilma nunca participou de uma ação armada. O Aerolula em ouro era na verdade o avião de um magnata do petróleo. Milton e Ney estão vivos e saudáveis. E processaram os que mentiram sobre eles. Elas não sumirão por decreto. Enquanto isso, o Brasil nunca viveu um período de estabilidade política como o de agora.
Não é preciso pôr em dúvida e proibir o exercício literário por causa de alguns. Seria como burocratizar o pensamento, tornar o mundo liso como uma poça de lama. Não é assim que funcionamos. Somos bem mais complexos. Sobrevivemos a mentiras e infâmias. Nos fortalecemos com elas. Melhor deixar a expressão livre, nos ensina a história. Não sobrevivemos é sem liberdade.
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