O GLOBO - 09/10
Eles toparam um com o outro num congresso mundial em Viena. A Viena das valsas onde, ao contrário do que os seus amigos previram, não ouviram um só música, pois passaram horas discutindo diferenças e semelhanças entre sociedades e culturas porque estavam num encontro de antropólogos profissionais e, naquela época, o figurino era o estudo da organização sócio-política daqueles sistemas marginais, conhecidos somente por quem os descrevia e analisava.
Entre uma sala e outra de um palácio onde se improvisaram auditórios, eles se encontraram e como haviam estudado seus respectivos trabalhos, juntaram o interesse intelectual com o pessoal. A tal ponto que a competição, a inveja de alguma frase ou argumento brilhante contra o outro foi superado pelo que chamamos de "simpatia". Essa ponte inesperada que num mundo de indivíduos concebidos como discretos e autônomos, faz com que haja iluminações relacionais entre subjetividades.
O gosto do encontro os fez passar ao largo de suas divergências teóricas. Pois um defendia que o "Homem" tinha uma natureza imutável e o outro se filiava de corpo, alma e coração a tese oposta: a "Humanidade" não tinha nenhuma natureza, instinto ou rumo e, por isso precisava de livros de mitos e de receituários legais e religiosos que se mostravam como costumes, crenças e rituais mas que, lidas de dentro, faziam parte das possibilidades que permeiam modos de ser neste mundo.
Esse debate foi o ponto alto (ou baixo...) do Congresso. Ele lembrava um Fla-Flu pelo entusiasmo radical com o qual as teses eram apresentadas e defendidas. Mas as teses inexoravelmente inimigas arrefeciam quando, no final das sessões, os guerreiros se serviam de um delicioso vinho branco alemão em taças de cristal ao lado de canapés orientais.
Ao termino das discussões, os mestres inimigos surgiam sorridentes e, como generais em trégua, promoviam a paz entre seus combatentes menores cujas feridas cicatrizavam por meio daquela simpatia cordial e amorosa que despe as pessoas de suas convicções, fazendo com que elas sejam novamente razoáveis, inseguras, abertas e dispostas a serem pontes em vez de trincheiras.
Agora, eles bebiam juntos com duas colegas. Um acusava o outro de "essencialista" e "radical" mas o vinho os faziam sorrir em vez de rosnar. As colegas se aproximaram para felicita-los pelo brilho de suas falas. A francesa resolvia o dilema propondo uma formula; a outra moça que, se não me falha a memória era alemã, dizia que ali havia um caso de conflito irreconciliável. São posicionamentos incomensuráveis, disse num bom inglês revelando aos pesquisadores uma boca perfeita.
Neste instante, eles estão na mesa de uma escura boite. Continuam bebendo e na ausência das colegas que retocam o batom, o Professor Pedro Babalú diz ao amigo: eu estou muito inclinado a ficar com a francesa porque a alemã, tirando os lábios, é feinha... Certo, respondeu o Dr. Raimundo Matos, mas o problema é que eu também estou partindo para a gaulesa. Afinal sou um levistraussiano nato e você não. Mas isso não te dá nenhum direito, respondeu Balalú nervoso. Em seguida, pronunciou uma frase intrigante: Quem não foi, não volta — é preciso ir para poder voltar!
Diante do espanto, o professor Balalú explica do sentido da frase enigmática para o amigo. No ano passado, diz, em estive em Portugal numa bolsa de estudos que permite tudo, inclusive estudar. Era louco para conhecer o Porto e, estando em Coimbra, fui a estação de trem comprar uma passagem.
— O que deseja?
— Uma passagem de ida-e-volta para o Porto.
— Só podemos vendar a ida!
— E por que não ida e volta?
— Porque se o senhor não foi, como vai voltar?
Passou o tempo e os dois se falam pelo telefone. Ambos sabem o valor desses encontros que constroem a vida. Lembra daquele Congresso? — pergunta o sempre aflito dr. Matos. Sem dúvida, disse, Babalú. No final ninguém ficou com ninguém. Claro, arremata o Prof. Babalu numa rara gargalhada: quem não foi não volta!
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