O ESTADO DE S. PAULO - 30/10
Um PM matou domingo com um tiro no peito um jovem inocente numa rua do Jardim Brasil, na zona norte de São Paulo. O policial alegou que a sua arma disparou por acidente, quando ele saiu da viatura. Foi preso e autuado por homicídio culposo. No dia seguinte, centenas de pessoas formaram um indignado cortejo de 4 quilômetros até o cemitério onde o rapaz seria sepultado. O comércio do bairro fechou, em parte por solidariedade à família da vítima, em parte para se prevenir contra saques e depredações. Não adiantou grande coisa. "Aqui é o Brasil paralelo", resumiu um desacorçoado morador.
O alarmante é que as fronteiras desse Brasil estão se ampliando, a ponto de se confundir com as do outro, o "normal". O seu traçado resulta de uma paradoxal combinação de violência policial com a impunidade dos bandos para as quais ela serve de pretexto - isso quando precisam de pretexto - para investir contra o patrimônio público ou privado e pessoas não menos inocentes do que o adolescente baleado sem motivo. O fogo, a destruição e os assaltos se propagaram pelo bairro vizinho do Jaçanã. Bombeiros foram atacados. Um homem levou um tiro e precisou ser operado. A Rodovia Fernão Dias foi bloqueada. Houve 90 detenções.
O que diferencia o Brasil paralelo, cuja capital do momento é São Paulo, de outros países onde o terror toma as ruas em seguida a um ato de brutalidade policial é que, nesses, se trata de um surto; pode durar alguns dias ou mais de uma semana, mas acaba se esgotando. Entre nós, não há o mais remoto indício de arrefecimento dos crimes que apareceram na esteira das passeatas de junho contra o aumento das tarifas de ônibus e as inaceitáveis deficiências dos serviços públicos. Se algo mudou, desde então, foi para pior. Os black blocs e assemelhados como que se incorporaram ao cenário urbano noturno, enquanto os protestos ordeiros passaram a rarear.
Naqueles que vez por outra se repetem, é assustador ver a complacência dos manifestantes diante da alcateia que os acompanha. Não que se peça que um jovem desarmado tente deter um mascarado que arrebenta uma agência bancária ou lança um coquetel molotov. Mas não se tem notícia de expressões de repúdio dos "pacíficos" aos que se tornaram seus companheiros de viagem. Para estes, tanto se lhes dá que a população quase toda - 95% dos paulistanos, segundo o Datafolha - os condene. Isso será irrelevante enquanto o crime continuar compensando, com riscos nulos ou mínimos e gratificante sensação de triunfo pelas façanhas cometidas.
Cada vez que um vândalo volta da rua tão à vontade como nela entrou -no máximo, depois de algumas horas de inconsequente detenção ele é incentivado a fazer mais do mesmo. E entre os frequentadores da sua roda que ainda não seguiram o seu exemplo, a tentação de fazê-lo aumentará na medida de sua reafirmada incolumidade. É 0 chamado efeito demonstração: se o outro fez e se deu bem, a custo zero, por que não imitá-lo? O efeito será tanto mais eficaz quanto mais ralos os valores morais de cada qual. Não se subestime a facilidade com que um baderneiro pode persuadir o seu próximo de que o que ele faz é socialmente justo diante das iniquidades do "sistema".
Na sua obra Dos delitos e das penas, de 1764, o jurista Cesare Beccaria ensinou que, para dissuadir criminosos em potencial, mais vale a certeza da punição do que a duração do castigo. Já a certeza da impunidade, pode-se acrescentar, faz crescer o contingente dos que se sentem atraídos pelo vandalismo. "Desordem sem consequência atrai desordem", alerta o ex-secretário nacional de Segurança Pública José Vicente da Silva Filho, coronel da reserva da PM de São Paulo, em artigo publicado ontem no Estado. "É normal ver pessoas comuns participando de saques porque o "liberou geral" permitiu liberar os seus freios morais."
A rotina dos atos de barbárie contra a sociedade e o Estado dissemina o medo e a impotência. Os mais pobres, por sinal, correm mais riscos de estar no lugar errado, na hora errada. As cidades brasileiras, repita-se, não enfrentam uma onda passageira de distúrbios, mas uma agressão continuada - que ainda não recebeu a resposta capaz de desbaratar os seus perpetradores.
O alarmante é que as fronteiras desse Brasil estão se ampliando, a ponto de se confundir com as do outro, o "normal". O seu traçado resulta de uma paradoxal combinação de violência policial com a impunidade dos bandos para as quais ela serve de pretexto - isso quando precisam de pretexto - para investir contra o patrimônio público ou privado e pessoas não menos inocentes do que o adolescente baleado sem motivo. O fogo, a destruição e os assaltos se propagaram pelo bairro vizinho do Jaçanã. Bombeiros foram atacados. Um homem levou um tiro e precisou ser operado. A Rodovia Fernão Dias foi bloqueada. Houve 90 detenções.
O que diferencia o Brasil paralelo, cuja capital do momento é São Paulo, de outros países onde o terror toma as ruas em seguida a um ato de brutalidade policial é que, nesses, se trata de um surto; pode durar alguns dias ou mais de uma semana, mas acaba se esgotando. Entre nós, não há o mais remoto indício de arrefecimento dos crimes que apareceram na esteira das passeatas de junho contra o aumento das tarifas de ônibus e as inaceitáveis deficiências dos serviços públicos. Se algo mudou, desde então, foi para pior. Os black blocs e assemelhados como que se incorporaram ao cenário urbano noturno, enquanto os protestos ordeiros passaram a rarear.
Naqueles que vez por outra se repetem, é assustador ver a complacência dos manifestantes diante da alcateia que os acompanha. Não que se peça que um jovem desarmado tente deter um mascarado que arrebenta uma agência bancária ou lança um coquetel molotov. Mas não se tem notícia de expressões de repúdio dos "pacíficos" aos que se tornaram seus companheiros de viagem. Para estes, tanto se lhes dá que a população quase toda - 95% dos paulistanos, segundo o Datafolha - os condene. Isso será irrelevante enquanto o crime continuar compensando, com riscos nulos ou mínimos e gratificante sensação de triunfo pelas façanhas cometidas.
Cada vez que um vândalo volta da rua tão à vontade como nela entrou -no máximo, depois de algumas horas de inconsequente detenção ele é incentivado a fazer mais do mesmo. E entre os frequentadores da sua roda que ainda não seguiram o seu exemplo, a tentação de fazê-lo aumentará na medida de sua reafirmada incolumidade. É 0 chamado efeito demonstração: se o outro fez e se deu bem, a custo zero, por que não imitá-lo? O efeito será tanto mais eficaz quanto mais ralos os valores morais de cada qual. Não se subestime a facilidade com que um baderneiro pode persuadir o seu próximo de que o que ele faz é socialmente justo diante das iniquidades do "sistema".
Na sua obra Dos delitos e das penas, de 1764, o jurista Cesare Beccaria ensinou que, para dissuadir criminosos em potencial, mais vale a certeza da punição do que a duração do castigo. Já a certeza da impunidade, pode-se acrescentar, faz crescer o contingente dos que se sentem atraídos pelo vandalismo. "Desordem sem consequência atrai desordem", alerta o ex-secretário nacional de Segurança Pública José Vicente da Silva Filho, coronel da reserva da PM de São Paulo, em artigo publicado ontem no Estado. "É normal ver pessoas comuns participando de saques porque o "liberou geral" permitiu liberar os seus freios morais."
A rotina dos atos de barbárie contra a sociedade e o Estado dissemina o medo e a impotência. Os mais pobres, por sinal, correm mais riscos de estar no lugar errado, na hora errada. As cidades brasileiras, repita-se, não enfrentam uma onda passageira de distúrbios, mas uma agressão continuada - que ainda não recebeu a resposta capaz de desbaratar os seus perpetradores.
Nenhum comentário:
Postar um comentário