FOLHA DE SP - 01/08
De onde vem a ideia dominante, de que a renúncia ao prazer sempre ganha pontos?
O papa Francisco, quando era o cardeal Jorge Bergoglio, de Buenos Aires, conversava de religião com o amigo rabino Abraham Skorka. Os diálogos estão agora num livro, que, no Brasil, acaba de sair, "Sobre o Céu e a Terra" (editora Paralela).
Os dois religiosos tratam de matérias escabrosas --as quais não são apenas contracepção, células-tronco, divórcio, aborto e casamento gay, mas também as questões que desafiam a fé de qualquer um: por que a presença do mal no mundo? Deus é apenas uma resposta fantasiosa a nosso mal-estar psíquico? A religião foi inventada para servir de ópio dos povos?
Como ambos são decididos a parecerem simpáticos e razoáveis, o texto é agradável e um pouco previsível. Não que eu esperasse grandes viradas teológicas: de qualquer forma, um livro para o grande público não seria o lugar para isso. Mas esperava mais ousadia no pensamento.
Alguém dirá que ousadia não é coisa para papa --citação de Francisco na orelha do próprio livro: "A verdade religiosa não muda, mas se desenvolve e vai crescendo".
Sinto muito, a igreja tem uma história (muitas vezes sangrenta) de mudanças. Só para dar uma ideia, nos 2.000 anos desde que os apóstolos se reuniram em Jerusalém:
-- Faz só 1.700 anos que acreditamos que o Pai e o Filho teriam a mesma natureza;
-- Faz menos de 1.600 que acreditamos na maternidade divina de Maria, e por volta de 1.400 que acreditamos na perpétua virgindade da mesma;
-- Faz apenas um pouco mais de 800 anos que o celibato se tornou obrigatório para o clero, e menos ainda que confissão e comunhão se tornaram obrigatórias uma vez por ano, na Páscoa;
-- Faz por volta de 600 anos que a gente inventou o Purgatório;
-- E é só desde 1870 que o papa é dogmaticamente infalível.
À vista dessa história de reviravoltas, em que cada um pode se tornar herético (o que, hoje, no máximo, vale uma excomunhão sem grande interesse, mas, no passado, acarretou consequências fatais para muitos), ninguém sabe as surpresas que nos reserva a igreja de amanhã.
Quanto a mim, espero há tempos a reabilitação dos cátaros, que são minha seita preferida (exterminada no século 12). Eles tinham a melhor solução teológica ao problema do mal na Terra e da estupidez dos homens: basta pensar que o mundo seja criação do diabo, e não de Deus.
Enfim, entre os muitos assuntos ao redor dos quais papa Francisco e o rabino Skorka concordam, um capturou minha atenção. Francisco diz "nesta civilização consumista, hedonista, narcisista...", e o rabino Skorka, "...em uma concepção hedonista da vida, egocêntrica, ególatra".
Embora o papa e o rabino não desprezem todos os prazeres terrenos (isso significaria desprezar a criação --pecado gravíssimo), ambos parecem convergir com um clichê dos críticos culturais contemporâneos, considerando que "hedonismo" é palavrão: a procura do prazer como bem único ou supremo parece ser o que eles menos gostam na nossa época. No Rio, aliás, Francisco mencionou o prazer entre os "ídolos" que nossa época colocaria no lugar de Deus. Algumas notas.
1) A correlação entre hedonismo e egoísmo é, no mínimo, problemática. Exemplo. Quem é mais egoísta? Alguém que se priva de toucinho na sexta-feira para ganhar o Paraíso? Ou alguém que transa quanto mais puder, sempre achando que o que ele mais gosta é ver sua parceira ou seu parceiro gozar?
2) Uma cultura que, de maneira quase unânime, não para de lamentar seu "hedonismo", só pode ser radicalmente anti-hedonista, ou seja, oposta ao prazer como bem. É fácil constatar que inclusive os que acreditam na existência de uma alma imortal sentem a finitude da vida; agora, é espantoso que, mesmo assim, o prazer continue tendo, para nós, uma conotação moral negativa. E a renúncia ao prazer (seja ela para satisfazer a Deus ou ao médico higienista), uma conotação moral positiva.
3) Nos três grandes monoteísmos, o prazer é facilmente culpado ("não se cansem de pedir perdão", encorajou papa Francisco). Alguém dirá que isso acontece sobretudo no cristianismo porque Deus se manifestou pelo sofrimento e não pelo prazer de seu filho. Essa é uma visão teológica à qual não sei contribuir. Mas a questão cultural correspondente é: o que fez o sucesso de uma religião que se fundou na ideia da paixão necessária do filho de Deus e, por consequência, na ideia de que o sofrimento e a renúncia ao prazer, de alguma forma, ganham pontos?
4) Só para lembrar: não era assim entre os pagãos, nem entre os libertinos dos séculos 16, 17 e 18.
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