FOLHA DE SP - 01/08
No debate público, é preciso se esforçar para entender, e não desqualificar, as razões alheias
A coluna passada tentou caracterizar concordâncias (políticas) e discordâncias (econômicas) de uma visão de esquerda com a direita liberal-conservadora. Como parte do trabalho, fui ler colunas de Luiz Felipe Pondé, que tinha chamado a esquerda a debater o Brasil. Seus textos são repletos de questões que fazem parte do debate entre a direita e a esquerda no país. Hoje, discuto algumas delas.
Uma reclamação comum da direita é a de que a esquerda monopoliza a academia brasileira nas ciências humanas. Tendo a concordar, ao menos em parte.
Embora minoritário, há espaço para o pensamento conservador na universidade. Problema maior é que na escola básica o ensino de ciências humanas tem um domínio de um marxismo pedestre. Quando fiz o ginásio, nos anos 1980, "ensinavam-se" coisas como "a renda per capita não é bom indicador de riqueza", "no Paraguai do século 19, antes da guerra com a tríplice aliança, não havia analfabetos". De lá para cá, o domínio parece ter se consolidado.
Embora a disputa ideológica sempre vá existir, os currículos escolares de história, geografia e filosofia precisam ser mais equilibrados (e melhores) para que não virem repetições de mistificações à esquerda ou à direita.
Além de aprender as fundamentações dos distintos cânones do pensamento, as crianças precisam assimilar que o debate exige uma dose de pragmatismo e flexibilidade. Assim, é possível mudar de opinião sem abandonar valores pessoais.
Por exemplo, a esquerda defende a educação pública gratuita. Entretanto, a possibilidade de a universidade pública ser paga, uma proposta típica da direita, é algo a ser considerado, já que libera recursos para a escola básica. Isso não é tão diferente da situação de quem defende o passe livre de ônibus e ficará satisfeito se os subsídios forem pesados sem que se deixe de cobrar uma tarifa.
Esses são exemplos de coisas que a esquerda deve considerar para que o debate seja proveitoso. Contudo, essa tarefa também precisa ser feita pela direita. Trato hoje de duas acusações que costumam fazer parte do discurso direitista: o Bolsa Família é uma esmola e a esquerda brasileira desrespeita a democracia.
Para a esquerda, o Bolsa Família é uma iniciativa que faz parte dos direitos básicos dos cidadãos associados ao Estado de bem-estar social, além de promover a distribuição de renda, o que ajuda a sustentar o crescimento econômico.
Na origem, porém, a renda mínima foi defendida pela direita, que usa o conceito de Imposto de Renda negativo como alternativa ao Estado de bem-estar social. Além disso, como não há capitalismo sem moeda, o Bolsa Família, ao levá-la a lugares de economia não monetária, foi iniciativa altamente capitalista.
Quanto à democracia, é por demais óbvio que existem ditaduras de esquerda e de direita. É óbvio também que o Brasil é uma democracia cada vez mais sólida.
No entanto, a direita parece querer caracterizar como autoritárias coisas que são apenas divergências, naturais numa democracia. Por exemplo, enxergam racismo nas cotas raciais ou julgam que controlar a venda de remédios é fascista.
Da mesma forma que é insofismável a existência de racismo no Brasil, é claro que quem condena as cotas não se torna um racista por conta disso. É legítimo que alguém acredite que a educação é suficiente para resolver todos os problemas sociais e raciais do Brasil (nem que isso demore 200 anos).
Contudo, as ações afirmativas, cuja origem vem da mais longa e estável democracia da história, os EUA, fundamentam-se numa tentativa de criar condições concretas para o exercício dos direitos civis. Ninguém hoje é culpado pela escravidão, mas seus efeitos não se esgotaram com a abolição. Se discordam, tudo bem. Mas sem apelar, caracterizando-as como fruto do autoritarismo.
Outro exemplo é achar que a Anvisa, por controlar a venda de remédios, é fascista. Mesmo discordando, sou capaz de entender a lógica de quem reprova qualquer restrição às escolhas individuais, desde que não provoquem um dano direto a outras pessoas. Mas é demais chamar de fascista quaisquer iniciativa que se preocupe com o bem coletivo, como são as de saúde pública.
No debate público, é preciso se esforçar para entender --e não desqualificar-- as razões alheias.
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