ESTADÃO - 08/08
Existe o mundo das palavras e existe o mundo das coisas. Nunca coincidem perfeitamente, pois as palavras se referem à experiência, mas não são elas próprias aquilo que experimentamos. Parte da angústia humana, e também da beleza de viver, decorre do esforço que fazemos com as palavras para que exprimam, com a menor perda possível, o que vivemos e sentimos.
Mas o mundo das palavras não existe para trair o das coisas. Na política, o desejável é que o discurso e a vida estejam muito próximos. Ainda que essa atividade compreenda também a dimensão da utopia, dos desejos, do "dever ser", os amanhãs sorridentes com que os políticos costumam acenar não podem ser apenas instrumentos para o engodo e a trapaça.
Olhemos o Brasil. É chegada a hora de usar as palavras certas e ajustá-las à realidade. Em seguida, e entre aspas, vou exercitar um manifesto que, a meu ver, deve ser palavra encarnada.
"O Brasil quer mudar. Mudar para crescer, incluir, pacificar. Mudar para conquistar o desenvolvimento econômico que hoje não temos e a justiça social que tanto almejamos. Há em nosso país uma poderosa vontade popular de encerrar o atual ciclo econômico e político. Se, em algum momento, o atual modelo conseguiu despertar esperanças de progresso econômico e social, hoje a decepção com os seus resultados é enorme. O povo brasileiro faz o balanço e verifica que as promessas fundamentais foram descumpridas, e as esperanças, frustradas.
Nosso povo constata com pesar e indignação que a economia não cresceu e está muito mais vulnerável, a soberania do país ficou em grande parte comprometida, a corrupção continua alta, e, principalmente, a crise social e a insegurança tornaram-se assustadoras. O sentimento predominante em todas as classes e em todas as regiões é o de que o atual modelo esgotou-se. Por isso, o país não pode insistir nesse caminho, sob pena de ficar numa estagnação crônica ou até mesmo de sofrer, mais cedo ou mais tarde, um colapso econômico, social e moral.
A sociedade está convencida de que o Brasil continua vulnerável e de que a verdadeira estabilidade precisa ser construída por meio de corajosas e cuidadosas mudanças que os responsáveis pelo atual modelo não querem absolutamente fazer.
O povo brasileiro quer abrir o caminho de combinar o incremento da atividade econômica com políticas sociais consistentes e criativas. O caminho das reformas estruturais que de fato democratizem e modernizem o país, tornando-o mais justo, eficiente e, ao mesmo tempo, mais competitivo no mercado internacional.
A superação do atual modelo, reclamada enfaticamente pela sociedade, não se fará num passe de mágica, de um dia para o outro. Não há milagres na vida de um povo e de um país. Será necessária uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica. O que se desfez ou se deixou de fazer não será compensado em oito dias. O novo modelo não poderá ser produto de decisões unilaterais do governo, tal como ocorre hoje, nem será implementado por decreto, de modo voluntarista. Será fruto de uma ampla negociação nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país, a um novo contrato social, capaz de assegurar o crescimento com estabilidade.
Que segurança o governo tem oferecido à sociedade brasileira? Tentou aproveitar-se da crise para ganhar alguns votos e, mais uma vez, desqualificar as oposições, num momento em que é necessário ter tranquilidade e compromisso com o Brasil. Como todos os brasileiros, quero a verdade completa. Acredito que o atual governo colocou o país novamente em um impasse.
Estamos conscientes da gravidade da crise econômica. Poderemos recuperar a capacidade de investimento público tão importante para alavancar o crescimento econômico. Esse é o melhor caminho para que o país recupere a liberdade de sua política econômica orientada para o desenvolvimento sustentável.
A volta do crescimento é o único remédio para impedir que se perpetue um círculo vicioso entre metas de inflação baixas, juro alto, oscilação cambial brusca e aumento da dívida pública. O atual governo estabeleceu um equilíbrio fiscal precário no país, criando dificuldades para a retomada do crescimento. Com a ausência de políticas industriais de estímulo à capacidade produtiva, o governo não trabalhou como podia para aumentar a competitividade da economia. O Brasil precisa navegar no mar aberto do desenvolvimento econômico e social."
O que leram até aqui, estou certo, lhes pareceu bom. Mas tudo o que vai entre aspas não foi escrito por mim, não. São trechos da Carta ao Povo Brasileiro, assinada pelo então candidato do PT à Presidência da República, em junho de 2002. Disputamos o segundo turno. Fui derrotado. Ganhar e perder eleições são uma rotina na vida de políticos. Grave, nestes quase 11 anos, é a derrota do Brasil.
Com a Carta os petistas quiseram demonstrar que haviam aprendido a ser também moderados. Há pelo menos um "conservadorismo virtuoso", que consiste em preservar as instituições democráticas. Esse o PT desprezou. E há o mau, o que nasce da falta de imaginação e da inépcia. O partido andou em círculos, percorrendo a mais longa distância entre dois pontos. Em certos casos foi até além, pondo o País numa espiral negativa, para baixo. Dá arrepio pensar na herança que o terceiro governo petista deixará ao Brasil.
Na política, as palavras e as coisas, como em toda experiência humana, jamais coincidirão. Sempre restarão o espaço da imaginação e o saudável esforço para alargar as fronteiras conhecidas do possível. O que é inaceitável, aí, sim, é o uso da palavra como instrumento de engodo e de trapaça. Releiam os trechos da Carta petista e olhem o Brasil. O PT usou o universo das palavras para trair o universo das coisas. Usou a política para trair a esperança e a esperança, para rebaixar a política. É o que nos mostra o confronto do mundo das palavras com o mundo das coisas.
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