FOLHA DE SP - 23/07
Não é o moralismo de velhos progressistas que me incomoda. É a ausência de moralismo nos novos
Assisti a "The Newsroom", série da HBO sobre uma TV americana de notícias. Gostei. Estranhei.
A série tinha tudo para rebentar com a minha úlcera conservadora: o endeusamento de Obama; os ataques indiscriminados ao Tea Party (uma salada variada onde há tudo e o seu contrário); e aquele tom moralista que os "liberais" (no sentido americano da palavra) gostam de exibir com vaidade.
Mas depois, episódio atrás de episódio, fui mergulhando na vaidade de Aaron Sorkin, o criador e roteirista da série. A estética sempre foi o calcanhar de Aquiles da minha ética.
Sorkin escreve bem. Os seus diálogos, disparados à queima-roupa, são exemplos perfeitos de "timing" e humor, como nas melhores penas do cinema clássico de Hollywood.
A juntar ao texto, há atores que estão à altura dele: Jeff Daniels, que já não via desde "A Lula e a Baleia" (grande papel, espantoso filme de Noah Baumbach), é o âncora Will McAvoy --e nunca a palavra "âncora" foi usada com tanta ironia, sobretudo para descrever alguém que está literalmente à deriva. E à deriva por quê?
Pergunta absurda: quando um homem está sem rumo, "cherchez la femme". E a "femme" é MacKenzie McHale (divina Emily Mortimer), a ex-namorada e a atual produtora do bicho, que o atraiçoou no passado e que tenciona agora resgatá-lo no presente para um jornalismo digno desse nome.
Posso discordar, ideologicamente falando, da "agenda" de Aaron Sorkin. Mas reconheço essa "agenda" porque Sorkin é um dinossauro. Ou um apaixonado por dinossauros: ele presta homenagem ao melhor do jornalismo progressista americano.
O jornalismo que, nas emissões de Edward Murrow, destroçou o anticomunismo persecutório do senador McCarthy na década de 1950. O jornalismo que, nas matérias de Bob Woodward e Carl Bernstein, levou à queda de Richard Nixon na década de 1970. Um jornalismo que procurava ainda alguma verdade --e um certo sentido de decência.
Infelizmente, alguém devia comunicar a Aaron Sorkin que os dinossauros estão extintos. Basta olhar para a última capa da revista "Rolling Stone": vemos uma figura masculina, jovem, cabelo comprido, pose de estrela do rock. Quem será esse Jim Morrison?
Resposta: não é Jim Morrison. O nome é Dzhokhar Tsarnaev. Ou, para os íntimos, um dos carniceiros de Boston que matou e estropiou centenas de inocentes na maratona da cidade em abril passado.
A intenção da revista era fazer um perfil do criminoso. Na prática, a revista concedeu-lhe um tratamento visual icônico que é um insulto para as vítimas --e, sobretudo, um insulto para o jornalismo.
Aliás, não seria de espantar que Dzhokhar Tsarnaev, depois de ser capa da "Rolling Stone", se convertesse no novo Che Guevara das camisetas dos adolescentes retardados. E por que não? Psicopata por psicopata, pelo menos Dzhokhar Tsarnaev matou bem menos que o argentino.
Suspiros. E algumas memórias. A última vez que me confrontei com uma aberração visual e ética desse tipo foi em Israel, ao visitar o museu do terrorismo. Ali encontrei, em poster ou figurinhas, incontáveis bombistas suicidas em poses idênticas.
Parece que é uma indústria em Gaza e na Cisjordânia: antes do crime, o candidato a mártir tem direito a sessão fotográfica completa para imortalizar o nome e a imagem. Depois, quando a explosão acontece, as ruas e as escolas palestinas são inundadas pelo merchandising do herói.
Não vou discutir quem tem razão no conflito israelense-palestino. Ambos têm. Ninguém tem. Que interessa? Essa não é a questão.
A questão é que glorificar visualmente o terrorismo pertence a um outro planeta. Que, erradamente, eu julgava apenas encontrar no Oriente Médio.
Comecei por escrever contra o tom "moralista" dos progressistas americanos. Mas, pensando bem, não é o moralismo dos velhos progressistas que me incomoda. É a ausência de qualquer moralismo nos novos. É o relativismo imbecil de quem confunde um terrorista com uma estrela musical; e um atentado terrorista com um concerto de rock.
Talvez eu também seja um dinossauro. Mas, antes da extinção, confesso que prefiro o idealismo antiquado de Aaron Sorkin ao niilismo moderninho do pessoal da "Rolling Stone".
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