O Estado de S.Paulo - 05/07
Dois anos depois da primavera egípcia que em fevereiro de 2011 destituiu o general Hosni Mubarak, depois de 30 anos de ditadura, eis que irrompe um surpreendente "verão egípcio" que derruba o sucessor de Mubarak, o presidente Mohamed Morsi, da Irmandade Muçulmana.
De uma estação a outra, os atores são praticamente os mesmos: governo, Exército, Irmandade Muçulmana e a população. Mas a sua disposição no cenário não é a mesma.
Na primavera de 2011 a multidão queria a derrubada do regime militar de Mubarak, o que ocorreu de maneira gloriosa. Mas sua vitória foi confiscada pela Irmandade Muçulmana que instalou no governo, no lugar de um militar, um civil, Morsi.
Este ano o exercício foi diferente. A rua, furiosa de se ver privada do seu heroísmo e sua vitória, desesperada com a incompetência e o sectarismo dos novos dirigentes, encurralada e faminta, retomou o combate. E pela segunda vez foi vitoriosa.
Mas o estranho é que o protagonista afastado há dois anos pela revolução, o Exército, canalizou em seu proveito esta segunda onda de tumultos populares e assumiu provisoriamente o poder.
Deparamos com um cenário inédito e praticamente sem precedentes: um governo democraticamente eleito é deposto pela população em cólera, apoiada pelos militares e são estes que ganham. E esse imbróglio é aclamado por uma multidão que só deseja estabelecer a democracia em seu país.
Decididamente, Tocqueville, Maquiavel, Aristóteles ou Raymond Aron não ajudam muito a decifrar o combate de sombras e luzes que arrasta o Egito para onde não sabemos.
É caso de rir ou de chorar? Os Estados Unidos, as democracias, não sabem se estão felizes ou furiosos.
Claro que qualquer coisa é melhor do que o governo catastrófico de Morsi. Mas é preciso reconhecer que o retorno a uma nova e melhor gestão só foi possível graças a um levante popular que terminou com um golpe de Estado militar.
Um golpe de Estado conveniente, sem dúvida apoiado pela sociedade, controlado e decidido a restabelecer a legalidade, mas de qualquer modo foi um golpe.
De maneira que Estados Unidos e outras potências democráticas não sabem agora se devem rir ou chorar. Na verdade estão satisfeitos, mas evitam declarar isso em alto e bom som, temendo arruinar a nobre figura da democracia.
À espera que Paris, Washington ou Berlim delineiem sua reação e seus sentimentos, uma outra pergunta, capital, deve ser levantada: a violenta queda do governo da Irmandade Muçulmana, islamistas considerados moderados e realistas, não marcará uma reviravolta em todo o mundo árabe?
O acesso da Irmandade ao governo do Egito teve um forte conteúdo simbólico. De um lado, o Egito é o maior país árabe. De outro, a Irmandade, que nasceu no Egito em 1928, foi a inspiradora de todas as formas do islamismo que se desenvolveram depois no mundo inteiro, formas furiosas, violentas, e também moderadas e sedutoras.
O fato de a Irmandade egípcia sofrer uma derrota tão radical, depois de apenas um ano no poder, não poderá ser um tremendo golpe para as revoluções árabes, para os islamistas moderados ou radicais? Tomemos como exemplo a Tunísia, que viveu a primeira Primavera Árabe, há dois anos, que, como o Egito, elegeu em seguida um governo islâmico (o partido Ennahda). Ora esse poder islamista é contestado violentamente pela população, em particular as mulheres, que não aceitam o retorno a uma situação arcaica de vida.
Não longe do Egito, na fronteira do Oriente Médio, um outro caso merece ser esclarecido: o enclave palestino de Gaza, em Israel, está nas mãos do Hamas, movimento que nasceu da Irmandade Muçulmana egípcia, porém, mais radical, duro, brutal e sectário. Como o Hamas, regime bastante militarizado e furiosamente islamista reagirá ao desaparecimento do aliado egípcio? Poderíamos lembrar muitos outros casos, por exemplo o da Turquia, governada por uma equipe de islamistas moderados. Ao contrário do Egito, os islamistas moderados da Turquia contabilizaram resultados econômicos brilhantes, e apesar deste sucesso há semanas são acossados pela população descontente.
Poderíamos multiplicar as perguntas, especialmente porque o ocorrido no Cairo, pela geografia, história, política e religião, situa-se no centro palpitante da esfera de influência islâmica.
Ocasiões para voltarmos a este tema não tardarão./TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO.
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