O GLOBO - 15/06
Lá pela metade do século 20, por volta dos anos 1960, surgiram por aí diferentes movimentos contra o estado do mundo, com claros discursos pela construção de uma nova sociedade humana. Os beatniks, a primavera de Praga, os guerrilheiros latino-americanos, os panteras negras, o Solidariedade polonês, os hippies, os jovens americanos que se recusavam a ir para o Vietnam, os estudantes parisienses de maio de 1968, foram agentes explícitos de ideais programáticos e ideológicos que mobilizavam multidões.
Hoje não é mais bem assim. Talvez porque o mundo tenha perdido a esperança em mudanças radicais. Talvez porque a revolução tenha perdido prestígio para a mobilidade social. Talvez por não nos sentirmos mais representados por nenhuma força política.
Depois do movimento Occupy Wall Street, da chamada Primavera Árabe, dos combates na Siria, dos confrontos contra o governo na Turquia e na Grécia, das manifestações populares nas ruas de uma Europa em crise, os jovens do Movimento Passe Livre trazem agora para Rio de Janeiro e São Paulo esse novo estilo de contestação, típico do século 21 - uma contestação pontual, sem propriamente projeto de nação ou de sociedade.
Em outubro de 2011, visitei o acampamento do Occupy Wall Street, em Nova York, e escrevi aqui, nesse mesmo canto de página, que “todo mundo sabe porque foi parar no Zuccotti Park (local do acampamento dos manifestantes), mas parece que quase ninguém tem uma ideia precisa de para que serve o movimento, o que deve acontecer em seguida (...) é como se um malestar estrutural estivesse substituindo os programas ideológicos (...) as ideias parecem sufocadas pelo malestar que tomou o lugar da luta política”.
Depois de ver na televisão um rebelde sírio arrancar o coração de um soldado governista, como é possível acreditar que sua revolta seja alimentada pela construção de uma sociedade mais justa? Quem pode nos garantir que a Líbia, depois da destituição e morte de seu ditador, esteja mesmo construindo um regime de liberdade? Depois da crise, para onde irão as manifestações pontuais de rua em Paris, Madrid ou Atenas?
Questionado sobre o que queriam seus ativistas, um desses movimentos americanos de contestação postou resposta esclarecedora em sua página no facebook: “O processo é a mensagem”. Ou seja, o ato de agir é a única razão da ação.
Todos esses movimentos se explicam pela ausência de representação de seus membros no campo da política. Como cada vez mais nos sentimos menos representados pelos que estão no poder (mesmo que eleitos por nós), só nos resta ir às ruas para ao menos mostrar que existimos. Nossas reivindicações podem ir desde o fim de um ditador até a luta contra o aumento de 20 centavos na passagem de ônibus, tanto faz. Ainda no acampamento do Occupy Wall Street, no Zuccotti Park, vi uma senhora ativista fazer discurso de protesto contra a maneira pela qual era tratada por seu marido.
Ninguém mais se sente representado politicamente, assim como nossos supostos representantes não se importam mais em representar ninguém. Há um enorme abismo entre nós e o poder que devia agir em nosso nome, um desinteresse em nos representar. O processo eleitoral não tem nada a ver com a representação que devia ocorrer depois dele. Os eleitos só pensam em continuar eleitos e em proteger a instituição a que pertencem, para que ela exista para sempre, com eles dentro. Os acordos partidários, as manobras de sobrevivência, os interesses pessoais e, às vezes, as vantagens pecuniárias, são fatores hegemônicos na atividade do “representante”. Outro dia, o ex-presidente Lula disse que “às vezes, tenho a impressão de que partido é um negócio”.
Hoje o termo “democracia representativa” diz mais respeito a um regime que, eleito pelo povo, interpreta um determinado papel. Ela é “representativa” no sentido teatral da expressão, no sentido da representação dramática. Não há nenhuma justificativa programática ou ideológica para seus gestos. Apenas ação. Como podemos nos identificar com eles? Então vamos às ruas para nos representar a nós mesmos, nem sempre sabemos bem para que.
A resposta à crise da democracia representativa não pode ser o autoritatismo que elimina a liberdade de escolha e é contra a natureza humana. Nem a ilusão da democracia direta, mãe do populismo e da ditadura. Como tudo que é humano, a democracia não é um regime perfeito, mas pode ser aperfeiçoada sempre. (Em “Sabrina”, filme de Billy Wilder, o pai da heroína, motorista particular de família abastada, diz que a democracia é muito estranha: embora o contrário seja comum, quando um pobre casa com um rico, nunca se ouve dizer do pobre que ele foi “muito democrático”).
Enquanto não encontrarmos coisa melhor, não podemos abrir mão da democracia. É sagrada e insubstituível a beleza do voto que deve garantir o poder da maioria e os direitos das minorias que, daí a quatro anos, terão outra oportunidade de se tornarem maioria. E isso com liberdade permanente para todos irem às ruas ou não.
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