O Estado de S.Paulo - 15/06
Reconforta saber que em momentos de crise as pessoas também se consolam e ilustram com literatura. Assim como o furacão financeiro de cinco anos atrás reaninhou entre os best sellers o clássico da distopia conservadora de Ayn Rand A Revolta de Atlas, os recentes acontecimentos envolvendo o aparato de segurança dos Estados Unidos e o administrador de sistemas Edward Snowden trouxeram outra distopia de volta ao noticiário e às livrarias. No início da semana, em apenas 24 horas, as vendas de 1984, de George Orwell, aumentaram 6.021% na Amazon.
Usurpada e degenerada pela cretinice televisiva, a expressão Big Brother recuperou finalmente seu sentido original.
Fazia tempo que, na mídia, não se falava tanto no pesadelo orwelliano, na ditadura panóptica do Grande Irmão. O próprio Obama, enfiando mas esconjurando a carapuça, referiu-se ao invisível e onipresente soba de Oceânia quando há dias veio a público tentar justificar os abusos cometidos pelos arapongas digitais da Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês). Nem ao ganhar uma reedição comemorativa, em 1984, o romance gerou tão pervasiva discussão sobre os perigos de uma sociedade estritamente vigiada como agora.
Embora a NSA já existisse em 1984 (foi criada em 1952), suas atividades sub-reptícias eram infinitamente menos intensas, tentaculares e sofisticadas do ponto de vista tecnológico. Mas a preocupação com a tendência ao totalitarismo de todos os sistemas políticos e com a invasão da privacidade pelos órgãos de segurança do Estado já era grande.
No rastro das comemorações, Irving Howe convidou uma dúzia de ensaístas a revisitar o romance e refletir sobre o totalitarismo no século 20 (1984 Revisited, Harpercollins, 1983) e a revista Harper's dedicou-lhe uma capa, chamando para um artigo do arquiconservador Norman Podhoretz sobre o que Orwell estaria pensando da situação mundial naquele momento. Em seu delírio especulativo, Podhoretz imaginou Orwell de braço dado com a direita americana e apoiando Reagan, congraçamento que nem o marxista britânico Raymond Williams, a despeito de suas restrições ideológicas ao livro, ousaria maldosamente conceber.
O conservadorismo sempre interpretou 1984 pro domo sua. Oceânia foi, sem dúvida, inspirada na União Soviética, Big Brother em Stalin e Emmanuel Goldstein em Trotski, mas outros elementos, frutos da convivência de Orwell com o colonialismo britânico na Ásia e o modus operandi do serviço secreto inglês, entraram na composição do romance. A revista Life pôs o livro nos cornos da lua, quando do seu lançamento, em 1950, e nele viu algo que nem Podhoretz ousaria entrever: uma denúncia do "totalitarismo intrínseco" do New Deal de Roosevelt. Putzgrila! Com mais duas doses de uísque, Henry Luce, dono da Life, teria mandado desenhar Eleanor Roosevelt (FDR vivia numa cadeira de rodas) pisoteando um rosto humano, numa referência sem a menor sutileza à tenebrosa profecia que O'Brien, o braço torturador de Big Brother, joga na cara do torturado Winston Smith: "Se você quer formar uma imagem do futuro, imagine uma bota pisoteando um rosto humano - para sempre".
As esquerdas agiram com mais compostura. Os comunistas linha justa, menos. Chegaram a acusá-lo de guerreiro frio prematuro, de concentrar sua crítica no regime soviético, bête noire de outra obra do autor, A Revolução dos Bichos, apesar dos também evidentes traços em comum entre a ditadura do Grande Irmão e a recém-derrotada Alemanha nazista. Orwell imaginou o inferno totalitário de Oceânia em 1947, mal refeito da guerra, da morte da mulher (em 1945) e da irmã mais velha (em 1946) e às voltas com uma tuberculose que o mataria três anos mais tarde. Não surpreende que suspirasse pela democracia capitalista do início do século, ainda que se declarasse um socialista democrático.
Raymond Williams implicou com o desencanto político e social e o desespero do escritor, e em particular com o tratamento dispensado aos proles (proletas), a massa panúrgica de Oceânia que um autor comunista presumivelmente transformaria na vanguarda de uma revolução contra a ditadura do Grande Irmão. Seu maior equívoco, porém, foi atribuir as ideias de Winston Smith, o anti-herói do romance, ao próprio Orwell. Devo essa sagaz observação a Christopher Hitchens (A Vitória de Orwell, Cia. das Letras, 2010).
Orwell de fato venceu, no sentido de que estava certo. Chamaram-no de paranoico, mas quase 60 anos depois de sua morte descobriu-se que a agência de espionagem britânica M15 lhe seguira os passos de 1929 até o último suspiro. 1984 não é uma obra profética, mas uma fantasia hiper-realista, uma advertência, um protesto contra o autoritarismo em seu mais alto grau de crueldade e eficácia, um embate polêmico contra toda ortodoxia, um retrato da impotência do indivíduo em face dos gigantescos sistemas de organização que regem o mundo moderno. Poderia nos oferecer uma visão menos psicológica e mais materialista, por assim dizer, do totalitarismo-tese, de resto, compartilhada por Paulo Francis -, mas o que logrou foi o bastante para consagrá-la como um marco da ficção futurista, pelo visto, sem prazo de validade.
Há 34 anos, a New Left Review vaticinou que em 1984 o livro de Orwell seria uma curiosidade literária e nada mais. Não foi um caso isolado de prognose furada, diga-se a favor da NLR. Passados exatos 64 anos e sete dias de sua publicação, 1984 continua sendo uma referência sem par sempre que Leviatã mostra suas garras afiadas e nos descobrimos espionados de forma implacável por um avatar do Grande Irmão.
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