O GLOBO - 29/06
O movimento sem nome ainda não acabou, mas, aconteça o que acontecer, já é um movimento vitorioso. Desde o dia 6 de junho, as manifestações se sucedem pelo país afora, com mais ou menos gente. Elas já alcançaram certamente seu apogeu, mas nem por isso esgotaram seus temas.
Com os jovens do movimento, como escreveu Arthur Dapieve, “a libido voltou à política”. Exatamente o oposto do que os políticos fizeram com as duas. Para os de direita, aquilo que chamamos genericamente de povo é sempre ignorante e incapaz, serve apenas para elegê-los. Para os de esquerda, o povo é apenas um número em suas análises de classe, uma multidão. Para uns e outros, ele só existe quando eleitor.
No Ocidente, o pensamento político tem sido uma caricatura do fundamentalismo iluminista, a ideia de que é possível entender nosso comportamento privado ou público apenas pelos instrumentos que a razão nos dá. Consagramos ser possivel reduzir a complexidade humana a mecanismos que geram um futuro inevitável e aí, enquanto esperamos pelo inevitável, o inesperado nos surpreende.
Precisamos fazer política pensando nas pessoas, e não apenas em cidadãos sem rostos. A felicidade de cada um deve ser o fim supremo de todos os gestos públicos, não importa sob que regime — embora só a democracia nos possa dar plenas condições para essa prática. Se criticamos o transporte urbano, não é em busca de votos para um partido, mas porque desejamos que as pessoas, dentro de sua capacidade econômica, viajem bem, com conforto e paz de espírito.
As moças e rapazes que estão indo às ruas com tanto humor podem ser comparados a heróis de outras revoluções históricas. A revolução americana, que consagrou textualmente o direito à busca da felicidade, começou com uma esperteza lúdica de colonos da Nova Inglaterra, que se disfarçaram de indígenas para jogar o chá inglês ao mar, em protesto contra os impostos praticados pelo Império Britânico. A alegria indignada é a arma mais moderna das revoluções.
Em 1964, 68, 84 ou 92, a voz da rua reivindicava a troca da política então vigente por outra. Hoje ela se manifesta contra a política. Nossos oradores, em passeatas ou tribunas, eram admirados, conhecíamos as ideias de cada um deles, seguíamos seus eventuais partidos. Hoje as manifestações não têm líderes, ninguém faz discurso, cada um se expressa através do cartaz de cartolina que imaginar. Um deles, que vi na Rio Branco, dizia: “Meu coração não precisa de partido.”
A democracia representativa está em crise no mundo todo e não podia ser diferente no Brasil. Mas, como a democracia direta é a mãe do autoritarismo populista, precisamos encontrar um novo modelo de democracia participativa. Essas manifestações podem estar indicando um rumo nessa direção, mesmo que erradamente confundidas com a violência.
Ninguém aprova a violência praticada nelas, repeti-lo é quase uma platitude. Mas é preciso se dar conta da infiltração que o movimento vem sofrendo de quem não tem nada a ver com ele. Além de criminosos vulgares, há também os que desejam manipular as manifestações, direcioná-las para fins que não são os seus. Tenho visto muitos vídeos na rede que nos mostram a ação e os equipamentos usados por infiltrados integralistas, neonazistas e skinheads, com suas suásticas, socos ingleses e manifestos guerreiros.
Esses vídeos também nos revelam o arcaísmo cívico que é a existência de uma Polícia Militar no Brasil. Como diz Tulio Vianna, no blog da revista “Fórum”, ela é um contingente de soldados treinados para a guerra e abandonados na “frente de batalha”, a tratar como inimigos os cidadãos que devem proteger. Nossa Polícia Militar foi criada por D. João VI para proteger o rei do populacho da colônia. Se não acabarmos com ela, levaremos, quem sabe, mais um século para mudar sua ideologia.
Gosto muito de saber que a presidente e os políticos se manifestam sobre e até concordam com algumas das causas do movimento sem nome. O que é muito diferente, por exemplo, de Kadafi e Assad, que responderam aos protestos em seus países provocando uma guerra civil. Ou de um Erdogan arrogante que não aceita preservar uma praça para atender seu povo. Embora não creia que os políticos tradicionais sejam capazes de entender direito o que se passa ou que estejam mesmo dispostos a abandonar seus maus hábitos, torço para que o diálogo continue e dê certo.
Como torço pela selecão brasileira, nessa e em todas as Copas, em nome da alegria e do amor ao futebol, que não pode ser sufocado por razões mesquinhas e malfeitos dos outros. Construir um estádio como o Mané Garrincha, numa cidade em que a última final de campeonato teve menos de 2 mil espectadores, é uma insensatez e um desperdício que nos faz desconfiar de quem o praticou. Além de desrespeito ao brasileiro exemplar que deu o nome ao estádio. Mas torcer por um time é um gesto de pertencimento e confraternização, uma coisa da qual o país precisa muito. Domingo vou vestir minha camisa canarinho com o número 10 às costas e pongar no bonde que leva a rapaziada pro Maracanã.
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