O ESTADÃO - 06/04
Não se deixa prova em branco, qualquer estudante sabe disso. O vazio nada rende, é zero na certa, e denota não apenas desconhecimento do assunto em questão, mas também falta de empenho e imaginação. Preencher o vazio com algo que demonstre esforço e inteligência pode até proporcionar ao aluno uma nota razoável. Ao se exercitar no que batizei de ars embromatoria (a arte de embromar), o aluno testa a sensibilidade do professor, que, se de fato sensível e sensato, só não irá recompensá-lo se a algum disparate (a inclusão do hino do Palmeiras numa redação sobre a imigração no Brasil, por exemplo) somar-se um aluvião de erros de ortografia e concordância verbal, como recém aconteceu numa prova do Enem.
Quando estudante, exercitei-me na ars embromatoria com notável galhardia - façanha considerável levando-se em conta que estudei no exigentíssimo Colégio Pedro II. No então denominado terceiro ano ginasial, surpreendido pelo tema sorteado para a dissertação de uma prova de Geografia, "O fundo do mar", ponto de atroz aridez reduzido na minha memória a um arquipélago de termos vagos com os quais não saberia montar duas frases com um mínimo de sentido, não recolhi as velas. Salpicando uma "era mesozoica" aqui, uma "planície abissal" ali, um "talude continental" acolá, enchi duas ou três folhas de papel almaço com uma divagação sobre a riqueza dos oceanos que aprendera devorando Vinte Mil Léguas Submarinas, de Jules Verne. Arranquei um 7, a nota mais alta da turma.
Lembrei-me desse episódio escolar não por causa do Enem, mas de uma reminiscência do jornalista Edward Jay Epstein, publicada na última New York Review of Books. Em setembro de 1954, Epstein estudava na Universidade de Cornell, onde Vladimir Nabokov ensinava russo e literatura europeia. Era o "121". O professor Nabokov só identificava os alunos pelos números de seus assentos na sala. Não queria intimidades e era durão com eles (ir ao banheiro no meio da aula, só com atestado médico); e se os proibia de identificar-se com qualquer personagem das leituras selecionadas, liberava-os de conhecer-lhes o contexto histórico. Os romances, dizia, são obras de pura ficção, cujo único propósito é encantar o leitor.
Porque preferencialmente articuladas em torno de personagens e situações da obra em foco, em suas provas os leitores de orelhada dançavam feio. Epstein, que nunca havia lido Anna Karenina, gelou ao saber que teria de "descrever a estação de trem em que Anna e Vronski se viram pela primeira vez". Para não deixar o teste em branco, descreveu a estação que conhecia da versão para o cinema, estrelada por Vivien Leigh e dirigida por Julien Duvivier. Nos mínimos detalhes - muitos dos quais, descobriu depois, não existiam no romance.
Gélida e brumosa, com gente agasalhada da cabeça aos pés e operários atravessando as linhas do trem, o chefe da estação com seu gorro colorido, a premonitória morte de um agulheiro esmagado por uma composição que recuava - só isso guardei do primeiro encontro de Anna e Vronski, na estação de trem de Moscou, tal como Tolstoi, e não Duvivier, o descreveu. Ah, sim, e os brilhantes olhos cinzentos de Anna que tão intensamente chamaram a atenção do futuro amante. Que nota o professor Nabokov me daria por essa descrição?
Ao "121" ele deu a nota máxima. Encantado com a ars embromatoria do pupilo, ainda por cima o convidou para seu conselheiro cinematográfico. Epstein passou a assistir a quatro filmes no meio da semana, dos quais dava conta ao professor, que só então escolhia o que ia ver na noite de sexta-feira. Epstein ainda era pago por isso.
Se eu fosse professor de literatura, tentaria implantar aqui - se é que já não implantaram - o método Nabokov de avaliação. Como ele, só permitiria, nas provas, o uso de um dicionário. Apenas o aluno, com seus conhecimentos, sua memória, sua imaginação, e mais nada, submetido ao desafio de demonstrar que leu a obra abordada ou que é capaz de sair pela tangente de forma criativa, na corda bamba da ars embromatoria.
Já que o objetivo maior de todo professor é obrigar os alunos a mergulharem nos livros abordados em aula, certos testes tentariam de propósito dificultar ou mesmo inviabilizar a segunda opção. Não é tarefa difícil; basta ser específico, evitar generalidades, aludir a situações particulares. Como cascatear uma redação que nos obrigasse a descrever, por exemplo, o homônimo cão de Quincas Borba ou a redação do jornal em que Isaías Caminha trabalhava ou o encontro de G.H. com a barata se não lemos - ou lemos na diagonal - os respectivos romances de Machado, Lima Barreto e Clarice Lispector?
Tampouco de oitiva ou colando no Google pelo celular poderíamos descobrir, no afã de uma prova, como Macunaíma se cura de um sarampão, de quem é o sangue que o padre Nando encontra no ossuário de Quarup e onde Paulo Simões, o anti-herói de Pessach: A Travessia, de Carlos Heitor Cony, celebra seu aniversário de 40 anos.
A quem interessar possa, Quincas Borba é um cão de tamanho médio, pelo cor de chumbo, malhado de preto; a redação do matutino de Recordações do Escrivão Isaías Caminha tem uma sala pequena, mais comprida que larga, com duas filas paralelas de mesas minúsculas, ocupadas pelos redatores e repórteres; G.H. depara com a barata dentro de um armário e custa um bocado a se livrar dela; Macunaíma cura o sarampão com a água milagrosa de um curandeiro chamado Bento; o sangue encontrado pelo padre Nando pertence a Levindo, atingido por um tiro numa manifestação contra o usineiro Zé Quincas; Paulo Simões "festeja" o aniversário na casa dos pais, onde ganha de presente três comprimidos de cianureto.
Fim do recreio.
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