O GLOBO - 11/04
Thatcher erguia o estandarte do “capitalismo popular”, uma ideia que renovou o Partido Conservador
We built it (“Nós construímos isso”) — a frase, estampada nas telas e entoada pelos delegados, foi o tema central da convenção republicana do ano passado. Os republicanos estavam dizendo que os empresários criam seus negócios pelos próprios esforços e nada devem a ninguém. Mitt Romney, o candidato escolhido, extraiu um corolário negativo da mensagem, sintetizando-o no célebre parágrafo sobre os “47%”, registrado por uma câmera clandestina num jantar fechado de coleta de fundos: 47% dos americanos votariam por Barack Obama em qualquer circunstância pois são “dependentes do governo” e “acreditam-se vítimas”. Como um maestro oculto na coxia, o vulto de Margaret Thatcher regia a orquestra republicana — e, por oposição, também a democrata.
No 10, Downing Street, sede do governo britânico, em setembro de 1987, a primeira-ministra concedeu uma entrevista à revista feminina “Woman’s Own”. Confrontada com uma pergunta confusa sobre a ganância e os “yuppies” da City, ela disse que nada havia de errado com o desejo de ganhar sempre mais dinheiro e, na sequência, delineou seu credo filosófico: “Acho que atravessamos um período no qual muitas crianças e pessoas foram levadas a acreditar que, se tenho um problema, é a missão do governo resolvê-lo ou que conseguirei uma subvenção para lidar com ele ou que, se sou um sem teto, o governo deve me dar moradia — de tal modo que essas pessoas estão arremessando seus problemas sobre a sociedade. Mas, o que é a sociedade? Não existe essa coisa. O que existe são homens e mulheres, indivíduos, e famílias (...).”
Thatcher não inventou essa crença, mas inscreveu-a com letras de fogo na cena política do pós-guerra. Ronald Reagan, eleito presidente dos EUA um ano depois da ascensão da “revolucionária conservadora” britânica, certamente subscreveria sua passagem sobre a “sociedade”. A polêmica que marcou as últimas eleições americanas não foi deflagrada por Romney, mas por Obama, semanas antes da convenção republicana, num discurso de improviso na Virginia. No fundo, o presidente respondia a Thatcher e a Reagan: “Se você foi bem-sucedido, não chegou lá por conta própria. Se você triunfou, alguém no caminho deu-lhe alguma ajuda. Houve um grande professor em algum ponto de sua vida. Alguém ajudou a criar esse inacreditável sistema americano que permite que você prospere. Alguém investiu em estradas e pontes. A internet não nasceu espontaneamente. A pesquisa financiada pelo governo criou a internet, de modo que todas as empresas pudessem lucrar com ela. Quando alcançamos sucesso, triunfamos por nossa iniciativa individual, mas também porque fizemos coisas juntos.”
Obama tinha razão — e poderia acrescentar que a nova revolução energética em curso nos EUA deriva de pesquisa básica pública nos campos do fraturamento hidráulico e da perfuração horizontal. Mas, de certo modo, Thatcher também estava com a razão ao traçar círculos de giz em torno do indivíduo e da responsabilidade individual. A fé cega na “sociedade” fabricou corpos sociais fragmentados em fortalezas corporativas, vincados pelas linhas férreas das regulamentações e dos privilégios, entorpecidos sob uma pesada manta de garantias intocáveis. A Itália e a Grécia, entre tantos outros casos, evidenciam a virulência dessa enfermidade que arruína a capacidade de inventar e inovar das nações.
Thatcher não era rica, nem defendia os privilégios de casta numa Grã-Bretanha que, por tanto tempo, acreditara nas distinções de berço e de sangue. Seu primeiro triunfo eleitoral decorreu do esgotamento do modelo de “república sindical” esculpido por sucessivos governos trabalhistas. Os britânicos não aguentavam mais a combinação de estagnação e inflação oferecida por social-democratas presos nas teias dos compromissos sindicais. Thatcher erguia o estandarte do “capitalismo popular”, uma ideia que renovou o Partido Conservador e, década e meia depois, com o advento de Tony Blair, acabou provocando uma reinvenção vital do Partido Trabalhista.
Segundo uma lenda persistente, Thatcher e Reagan inauguraram o “neoliberalismo”. Em 1964, os gastos públicos britânicos representavam 38% do PIB. Durante a “era Thatcher”, entre 1979 e 1990, retrocederam de 45% para 39% do PIB. Em 2009, no ponto de partida da crise atual, estavam de volta na marca dos 48%, perto do recorde histórico, atingido em 1975. Hoje, giram em torno de 43%, ainda acima do patamar thatcherista. Nenhuma utopia sobre o Estado Mínimo tem o poder de fazer a história retroagir para os anos 1920, suprimindo o Estado de Bem-Estar erguido paulatinamente desde a Grande Depressão. Essa “coisa de sociedade” certamente existe, mas essa coisa de “neoliberalismo” não passa de uma fraude intelectual primitiva.
A dinâmica política das sociedades abertas articula-se como um debate incessante sobre os argumentos de Thatcher e de Obama. O capitalismo contemporâneo diferencia-se, no espaço e no tempo, ao sabor das oscilações eleitorais entre o “partido do indivíduo” e o “partido da sociedade”. Dois anos depois da entrevista de Thatcher à “Woman’s Own”, a queda do Muro de Berlim assinalou o colapso do “socialismo real”. O sistema soviético não tinha lugar nem para o indivíduo, nem para a sociedade — mas unicamente para um Estado totalitário que sufocava tanto a criatividade individual quanto os direitos sociais.
Dominic Phillips, um jornalista de esquerda que pedia a cabeça de Thatcher durante a greve dos mineiros de 1984, escreveu o seguinte, um quarto de século mais tarde: “Ainda odiamos Margaret Thatcher. Mas ela me legou ambição e oportunidade. E não só para mim. Aprendemos que nossa carreira profissional era nossa responsabilidade mesmo. E, por isso, também lhe agradecemos.” Desconfio que ela emolduraria esse elogio de alguém que acredita nessa “coisa de sociedade”, preferindo-o às homenagens convencionais dos estadistas.
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