Valor Econômico - 04/03
Deve soar estranho sugerir que as ciclofaixas que já somam dezenas de quilômetros para o lazer paulistano indiquem o fracasso de nossa democracia. E é claro que acho ótimo apostar na atividade física, largar o carro e ocupar o asfalto com outra coisa que não motores. Mas há um aspecto delas que nunca vi ser discutido, e me incomoda. Por isso nesta coluna, que trata de política, debato hoje o déficit democrático que as ciclofaixas apontam.
O problema é simples: elas foram instituídas há mais de três anos pela Prefeitura de São Paulo, já somam 150 km de extensão - mas ainda temos, a cada esquina, um monitor com bandeirinha, avisando aos ciclistas que não passem no sinal proibido. Ora, se precisamos de pessoas para deter os ciclistas no vermelho, é porque se supõe que os usuários não interiorizaram o cumprimento das leis do trânsito e o respeito ao outro. Supõe-se que, se não houver centenas de monitores, um por quarteirão, ciclistas serão mortos - ou, o que parece mais provável, dado que as bandeirinhas estão lá para deter as bicicletas e não os automóveis, que ciclistas atropelarão pedestres ou baterão em carros. A prefeitura é sábia em não correr o risco de uma morte ou mais a cada domingo. Mas me assusta a suposição de que, sem uma presença maciça de fiscais, teríamos acidentes, talvez numerosos. Os ciclistas de domingo são, ao que parece, pessoas de poder aquisitivo e talvez formação escolar maior que a média da população. No entanto, o que a prefeitura diz, pelos seus atos ainda que não em palavras, é: eles não respeitarão as leis de trânsito se não os tutelarmos. Porque é isso o que está em questão: são tratados como crianças, incapazes que seriam de respeitar a legislação ou mesmo a moral, que manda esperar quando é a vez do outro - carro ou pedestre - passar.
Sigo aqui um princípio que vem de muitos filósofos e deságua em Freud: avaliemos as pessoas pelo que fazem e não pelo que dizem. Certamente as ciclofaixas - as quais não estou atacando, repito - têm um aspecto "cidadão". Mas o fato é que, mantendo a chupeta quando a criança pode ser desmamada, conservando a terceira rodinha na bicicleta quando o jovem já pedala direito, brecando manualmente os ciclistas a cada esquina, protege-se, tutela-se quem não deveria mais precisar disso.
Dou um exemplo do próprio trânsito. Coloquemos numa rua um sinal de contramão: o motorista pode infringir a lei, mas, se ele for educado, ao ver o aviso, respeitará não só a norma legal mas também as pessoas que transitam pela rua, com tranquilidade, justamente porque elas acreditam que seu direito (à mão única, por exemplo) será respeitado. Ou posso bloquear, fisicamente, o acesso a essa rua. Nesse caso, o motorista não tem escolha. Ele é forçado a respeitar a mão. Fica mais seguro para todos. Mas o motorista é, assim, infantilizado. Estamos dizendo, quando não apenas proibimos uma rota mas a bloqueamos com cimento, que não confiamos em sua liberdade, em sua escolha, em seu caráter ético. Por isso, o mais "adulto", o mais democrático (dado que a democracia consiste em tratar as pessoas como adultas e não como crianças), é sinalizar a via em vez de bloqueá-la.
Não é por acaso que em vários países desenvolvidos o respeito à lei de trânsito é tão maior do que entre nós.
E é esse o problema que as ciclofaixas parecem revelar. Elas, aliás, entram aqui como indicador de um mal-estar bem maior que elas: a dificuldade de nossa sociedade para cumprir a lei, em especial aquela que resume toda a ética: respeite o outro. É até comum, no trânsito, se reclamar quando a prefeitura multa; diz-se então que ela deveria "orientar", isto é, tutelar, proteger, mostrar ao infrator que ele está infringindo a lei, mas sem puni-lo. Isso, como se cada motorista não tivesse passado por uma prova de conhecimento da legislação de trânsito - como se não soubesse que respeitar o pedestre e os veículos é básico, se quisermos um mínimo de cidadania na circulação de pessoas pelo espaço público.
Por que me deter nesta questão que pode parecer pequena? É porque o debate político, no país, é uma troca de acusações entre os dois partidos que têm disputado a Presidência, cada um dizendo que o outro falta com obrigações básicas republicanas (isso os tucanos dizem do PT, chamando-o de corrupto) ou democráticas (isso os petistas dizem do PSDB, que defenderia os interesses dos mais ricos e não os do povo). Pois bem, e se houver um problema sério, não só na forma como nossos representantes eleitos atuam, mas no modo como nós, cidadãos, eleitores e aqui ciclistas, agimos? Se nos colocamos na posição de quem é apenas protegido, de quem não se responsabiliza pelas suas ações, se acreditamos que precisamos usar dinheiro público para dispensar adultos de sua responsabilidade de parar - espontaneamente - a bicicleta no cruzamento, então somos, nós também, responsáveis pelo déficit democrático do país. Na verdade, é assim: na democracia, os defeitos geralmente têm alguma base nos próprios cidadãos, que são quem elege os Poderes.
Duas conclusões. Uma de curto prazo: tirar os monitores que "orientam" os ciclistas seria perigoso, porque eles expressam um problema real, o de cidadãos que não veem a cidadania como dever e, por isso, precisam ser tutelados. Acidentes ocorreriam; não vale a pena. Outra conclusão, esta de longo prazo: isso tem de mudar. Mas mudar na causa, o comportamento das pessoas, e não no paliativo, que são os monitores. Porque, no fundo, não há democracia sem uma sociabilidade democrática, e é esta que, penso eu, está falha entre nós.
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