O ESTADÃO - 03/02
A tragédia que matou 236 jovens em Santa Maria (RS) leva a indagar: afinal, para que servem as prefeituras? Os donos da boate e os músicos que provocaram o incêndio tiveram culpa e, espera-se, serão punidos pela Justiça, mas a responsabilidade maior foi da prefeitura, justamente porque a ela cabe a ação preventiva de criar normas de segurança, exigir seu cumprimento, fiscalizar e proteger a população. Levar conforto e bem-estar para os habitantes da cidade é o foco central da ação do prefeito. E proporcionar conforto é assegurar qualidade em saúde e educação, eficiência em segurança, manter a cidade limpa, levar água limpa e esgoto onde não há, enfim, cuidar das pessoas.
Em 1.º de janeiro foram empossados prefeitos em 5.565 municípios do País, dos quais só 28% foram reeleitos. Na segunda-feira, eles partiram em revoada à Brasília em busca de dinheiro. Em encontros com a presidente Dilma Rousseff e vários ministros, ouviram promessas: R$ 66 bilhões em verbas, renegociar dívidas com a União, acertar créditos com a Previdência, receber programas sociais federais em suas cidades.
Ficou faltando o essencial. Aquele essencial que proporciona autonomia e independência de gestão ao município e poupa expor o prefeito de pires na mão em Brasília. Para a prefeitura cumprir seu papel de cuidar das pessoas é fundamental organizar o orçamento da cidade para distribuir verbas com prioridade, qualidade e eficiência. Porém, a Lei n.º 4.320, que regula a programação orçamentária, financeira e patrimonial dos Estados e municípios, é anacrônica, ultrapassada, data de 1964, e precisa ser reformada. Não só para dar eficácia à gestão do prefeito, governador ou presidente da República, mas para evitar espertezas de políticos em final de mandato, sobretudo aqueles que perderam a eleição e se empenham em deixar o município na penúria para o sucessor.
Em vigor há 12 anos, a Lei de Responsabilidade Fiscal estabeleceu princípios de gestão pública, mapeou os grandes problemas nas três instâncias de poder - entre eles endividamento descontrolado, empreguismo, folha salarial inflacionada, criar despesas sem receitas - e definiu regras para disciplinar gastos e punir gestores públicos. Mas não avançou nas espertezas miúdas que proliferam, sobretudo em final de mandato. Como se viu no final de 2012: cidades com lixo espalhado pelas ruas atraindo ratos e doenças, salários atrasados, fornecedores e prestadores de serviços cobrando pagamento. A mais grave dessas espertezas aparece no orçamento agrupada no item "restos a pagar".
"A Lei Fiscal define regras de princípios e tem funcionado. Mas detalhes do orçamento do País, Estados e municípios estão contemplados na velha Lei n.º 4.320, de 1964, e que precisa ser atualizada", explica o economista José Roberto Afonso, um dos autores da Lei Fiscal. A Lei n.º 4.320 não coíbe os exageros contidos no item "restos a pagar", onde o gestor público lança débitos que deixa para o sucessor. O governo federal, por exemplo, deixou para 2013 "restos a pagar" avaliados pelo site Contas Abertas em R$ 200 bilhões - um verdadeiro "orçamento paralelo", na visão do economista Gil Castello Branco, secretário-geral do site.
Em Holambra - estância turística próxima a Campinas (SP) -, o novo prefeito, Fernando Godoy, denuncia que o antecessor sumiu até com cadeiras, mesas e arquivos do computador da prefeitura, encontrou duas creches interditadas e dívidas de R$ 25 milhões com fornecedores. Em Duque de Caxias (RJ), o ex-prefeito derrotado José Camilo Zito (PP) não pagou e a empresa de lixo suspendeu a coleta nos últimos três meses de 2012. A cidade ficou infestada por montanhas de lixo nas ruas. Nos municípios onde o prefeito não foi reeleito, ou não fez o sucessor, os salários deixaram de ser pagos desde o resultado eleitoral.
Histórias como essas proliferam Brasil afora e o prefeito fica impune porque a lei ficou desatualizada, não tipifica essas ações como crime , tampouco protege o cidadão contra gestões irresponsáveis. E, na próxima eleição, lá está o mesmo prefeito disputando o cargo.
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