Na sabatina de John Brennan, o indicado de Barack Obama para dirigir a CIA, o Senado dos EUA assistiu a um espetáculo de som e fúria. De um lado, a saraivada de críticas indiscriminadas à política de “assassinatos seletivos” conduzidos por drones não lançou luz sobre um debate vital. De outro, os aliados do governo no Congresso engajaram-se na tentativa de maquiar uma estratégia desastrosa, inspirada pela Doutrina Bush.
O Estado tem o direito de promover execuções extrajudiciais em território estrangeiro? As leis de guerra, que se inscrevem no direito humanitário internacional (IHL), aceitam o extermínio de combatentes inimigos no interior das fronteiras do teatro de batalha. Na sua inerente flexibilidade, elas admitem a morte de civis como um dano colateral, desde que não se comprove uma deliberação de promover massacres. Fora do teatro de batalha, vigoram as leis internacionais de direitos humanos (IHRL), que vetam execuções extrajudiciais em todos os casos, exceto quando o alvo representa ameaça direta e imediata a terceiros. A crítica à política americana de contraterrorismo acusa-a de violar a IHRL; o governo retruca situando os “assassinatos seletivos” na moldura do IHL. Nesse ponto, a razão está com Obama.
Comprovou-se que os ataques de drones têm precisão superior à de bombardeios aéreos convencionais. Os drones não mataram centenas de civis, como reportam jornais distraídos e fanáticos antiamericanos, mas algumas dezenas, ao longo de vários anos. As fontes originais das exageradas estimativas são, invariavelmente, jornais locais das Áreas Tribais Federais do Paquistão, controlados pelo Taleban, e agências de inteligência paquistanesas célebres por seus laços de cooperação com grupos jihadistas da Caxemira. Desgraçadamente, a voz que sustentou tais verdades no Senado americano foi a do sórdido Brennan, uma figura marcada pela colaboração tácita com as práticas de tortura empregadas sob George W. Bush na “guerra ao terror”.
A União Americana pelos Direitos Civis (Aclu) arguiu nos tribunais que os “assassinatos seletivos” poderiam ser conduzidos no Afeganistão, ao abrigo do IHL, mas nunca no Paquistão, no Iêmen ou em outros territórios exteriores ao teatro de batalha. No caso das organizações do “terror global”, o argumento da limitação geográfica da aplicação do IHL não é apenas errado, mas politicamente intolerável. A finalidade principal das leis de guerra é proteger a população civil nas áreas de conflito. Se triunfasse a tese da Aclu, as leis de guerra seriam convertidas em ferramenta de proteção do “exército do terror”, pois todos os países fora do Afeganistão ganhariam o estatuto de santuários para os combatentes ilegais da Al-Qaeda, que não se subordinam ao IHL e atacam deliberadamente alvos civis. Nessa hipótese, os chefes jihadistas teriam o privilégio extraordinário de decidir unilateralmente sobre a localização dos sucessivos teatros de batalha, que seriam sempre criados por seus próprios atos de terror.
No caso de conflitos transnacionais de novo tipo, como a “guerra ao terror”, as leis de guerra não podem ser circunscritas pelas fronteiras geopolíticas tradicionais: o teatro de batalha move-se junto com o movimento dos atores do conflito. A Doutrina Bush derivou dessa conclusão correta o postulado maximalista de um “teatro de batalha global”. O mesmo postulado conduz o governo Obama a reivindicar uma “exceção americana”: na sua política de contraterrorismo, os EUA teriam o privilégio de ignorar as fronteiras geopolíticas e a soberania das nações.
A noção de “teatro de batalha global” tem implicações aterradoras, que aproximam a humanidade dos domínios da barbárie. Ao seu amparo, drones americanos poderiam exterminar terroristas da Al-Qaeda em Londres ou São Paulo, enquanto drones israelenses matariam militantes do Hezbollah no Líbano e seus similares chineses eliminariam separatistas uigures no Cazaquistão.
A lei de neutralidade, que faz parte das leis de guerra, deveria conduzir Washington a pensar duas vezes antes de postular um “teatro de batalha global”. Ela impõe obrigações tanto aos neutros quanto aos beligerantes. Os neutros não podem dar abrigo a forças de uma das partes beligerantes. Por outro lado, os beligerantes não podem operar militarmente no território dos neutros. O Afeganistão converteu-se, em 2001, em alvo legítimo das ações militares americanas quando rejeitou o ultimato para expulsar a Al-Qaeda de seu território. Mas, ao menos em princípio, o Paquistão, o Iêmen e outros países não são alvos legítimos de incursões de drones.
O cenário no terreno é menos claro do que gostariam os juristas. Em tese, o governo paquistanês é um aliado dos EUA na “guerra ao terror”. Contudo, os jihadistas não são eficazmente assediados pelas forças do Paquistão nas Áreas Tribais Federais. O jogo duplo do Paquistão conferiu legitimidade à ação de comandos americanos que liquidou Osama bin Laden, mas não pode servir como justificativa permanente para ataques de drones não formalmente autorizados pelo país. No Iêmen, na Líbia e em outros lugares, as coisas são ainda mais escandalosas, pois os EUA nem mesmo tentam coordenar tais operações com os governos nacionais.
Obama extraiu as conclusões erradas do triunfo obtido na hora da eliminação de bin Laden. Sua abordagem da “guerra ao terror” estabelece precedentes assustadores. A caça aos jihadistas, inclusive com o uso de drones em operações letais, demanda a cooperação internacional. Mas Washington continua a rejeitar o quadro multilateral do Conselho de Segurança da ONU para configurar um teatro de batalha global legítimo. Diante da crise aberta na sabatina de Brennan, congressistas americanos formularam a ideia de uma corte revisora das listas de alvos dos “assassinatos seletivos”. É apenas uma forma de retocar a maquiagem da intolerável “exceção americana”.
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