GAZETA DO POVO - PR -16/02
A renúncia de Bento XVI abriu a porteira para profetismos tolos. Fala-se do “mal-estar das instituições”. É uma meia- verdade. Igreja, família, imprensa, escola resistem a um modelo de mundo corroído e sem projeto
Na última semana, o mundo viu surgir, súbito, uma legião de vaticanistas, sociólogos e antropólogos da religião, profetas do fim do catolicismo. Como que num mercado de peixes, fizeram um alarido próprio para esses tempos regidos pela instantaneidade das redes sociais. Seria engraçado, não fosse trágico. O “imaginário da crise” – forjado agora em torno da renúncia do papa Bento XVI, mas ontem ou anteontem ao redor de qualquer assunto da hora – só vem confirmar a incapacidade epidêmica de pensar o mundo como fenômeno, e não apenas como fato.
Essa crise – a do pensamento – é muito maior que todas as outras. E, para desalento geral, tem raízes profundas, que não neutralizaremos apenas com o botão do “curtir”, ou algo que valha. Vivemos, com todas as letras, tempo de desamparo profundo, o desamparo próprio do individualismo, ao qual nos abraçamos como que a um copo de veneno. Ele nos mata em gotas. E impede de entender o tempo e a história para além das nossas divisas umbilicais. Se há crise, essa é de valores. É mais grave que mísseis ou catástrofes climáticas. Vale lembrar a síntese esboçada pelo filósofo Adauto Novaes, ao dirigir o seminário “Civilização e barbárie”. O ponto em que nos encontramos é de que o mundo esqueceu o passado e perdeu de vista o que espera do futuro. Ora, foi sobre essas duas condições que se consolidou o que chamamos de modernidade. Procurávamos um destino comum, ao qual balizávamos com o que vinha antes e o que viria depois. Sem essa dialética, o presente vale por si mesmo, o que redunda numa tremenda cilada.
O preço, continua Novaes, é que chafurdamos no naturalismo e no artificialismo. Tudo pode. As razões de foro íntimo se sobrepõem às razões morais, reiterando o que Richard Sennett chamou de “o declínio do homem público”. Tanto a naturalidade extrema quanto a percepção epidérmica da vida se colocam contra a cultura, sem a qual nos vemos entregues à nossa própria miséria. E não estamos longe disso. Deixamos de crer na política como caminho para pactuar a convivência com o outro. Aceitamos relações sociais que nascem e morrem como as moscas. As explicações sobre toda e qualquer coisa são dadas pela técnica, em detrimento das humanidades e mesmo da teologia. Seguimos nos contentando com a abstração, o efeito, o impacto. Serão passageiros, como no mais, o resto. Assim, não caminha a humanidade.
Essa ética “presentificada”, que acaba onde começa, impede a sociedade de fazer projetos. E, sem projetos, resta a indiferença – com folga o pior dos atentados ao mundo civilizado. Pode haver quem se pergunte o que o vazio existencial da pós-modernidade tem a ver com o barulho de bateria de escola de samba criado em torno da renúncia do papa Bento XVI. A resposta, obviamente, não pode ser encontrada em meio às toneladas de fogos de artifício soltas nos últimos dias, posto que turvam a visão. É preciso ir além. E ir além dói.
A propalada crise da qual tanto se fala quando o assunto é a Igreja tem obviamente suas peculiaridades. O Vaticano virou vidraça mais de uma vez. Mas, vista de maneira isolada, a situação fica distorcida. Os dilemas que assolam a Igreja antes de tudo assolam a própria sociedade. O discurso da universalidade – sentido próprio, inclusive, da palavra “católico” – diluiu-se no que muitos chamam de “guinada subjetiva”, o “show do eu” em que nos metemos, achando que aí residia o futuro. Não nos vemos mais como parte de um grande projeto comum – de cidade, de convivência, de moralidade –, preferindo um espetáculo solo.
Como escreveu certa vez o crítico literário Terry Eagleton, da alegria de nos vermos parte de uma natureza, sendo semelhantes irmanados pelos mesmos desafios, passamos a reivindicar o direito a um discurso solitário. Ser humano não é mais ser igual, é ser diferente, habitar pequenos cosmos, estar aquém. Ao resistir a esse manifesto suicida, a Igreja se vê pressionada a adotar doutrinas confortáveis e narcisistas. Não poderá.
Em tempo. A crise social que recai sobre a Igreja afeta do mesmo modo outras instituições. O relativismo que grassa por aí atinge o sentido da família, transformada em um slogan de propaganda; a escola, que tende a se converter num centro de treinamento ou num bunker de segurança; a imprensa, rejeitada como comunidade interpretativa. Estamos todos em crise. Nisso, estamos juntos.
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