Se houve alguma surpresa com a ênfase de última hora dada ao tema da "guerra cambial" na pauta da reunião do G-20, sexta-feira e sábado, em Moscou, não houve surpresa alguma no comunicado emitido ao final do encontro. Na velha e boa tradição da diplomacia econômica global, as maiores economias do mundo se comprometeram a não promover "desvalorizações competitivas" de suas moedas, mas, ao mesmo tempo, com o referendo explícito do FMI e do G-7, reafirmaram que as políticas monetárias expansionistas, adotadas sobretudo nos países desenvolvidos, visam à estabilidade e ao crescimento no plano doméstico, embora possam produzir impactos no câmbio e no comércio internacional.
Não é preciso ser bom entendedor para logo perceber que o dito será, na prática, suplantado pelo não dito, com a supremacia do "faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço". Os países que quiserem - e puderem -, em resumo, permanecem livres para, qualquer que seja o caminho, desvalorizar suas moedas. A verdade nua e crua é que, pelo menos enquanto a recuperação da economia global não se apresentar robusta e sustentável, "a guerra cambial" não só continuará como deve recrudescer.
"A 'guerra cambial' existe e está fortíssima", afirma a economista Vera Thorstensen, coordenadora do Centro de Comércio Global e do Investimento, da Escola de Economia da FGV/SP. Do alto de uma experiência de uma década e meia em foros de comércio internacional, Vera não tem dúvidas de que "só está se dando bem quem consegue desvalorizar sua moeda".
Um relatório do HSBC, divulgado em Londres às vésperas do G-20, sustenta esse diagnóstico, com fatos e números. A conclusão do estudo, que analisou a trajetória recente de três dezenas e meia de moedas, repele controvérsias: "A 'guerra cambial' está se intensificando, o número de participantes está se alastrando, novos estratagemas de política econômica estão sendo usados para guerrear e a escala de influência desses fatos no comércio internacional global está se intensificando".
Essa constatação, contudo, de modo algum pode servir para justificar a situação de crescente isolamento do Brasil nas rotas do comércio internacional. O câmbio é uma variável importante, mas, na definição dos novos ganhadores e perdedores, existem outros elementos tão ou mais importantes que ele.
Nas últimas duas décadas, justamente no período em que a política brasileira de comércio exterior mais se retraiu, o mundo assiste a uma transformação estrutural no modo de produção em escala planetária, com dramáticas consequências para o comércio entre nações.
Nas asas da disseminação das aplicações de tecnologia da informação, o comércio exterior tradicional, caracterizado pela venda de produtos e serviços produzidos em um país para outro, tem dado lugar a uma nova onda, na qual a espinha dorsal são as relações das cadeias produtivas de valor (ou de suprimento) com os fluxos comerciais.
Se antes o comércio exterior era o ambiente em que se vendiam coisas internacionalmente, agora ele passa a operar com base numa combinação de venda ao exterior e de produção internacional.
Nesse novo comércio internacional comandado pelas cadeias de valor, partes, peças, produtos são importados ou exportados e depois reexportados ou reimportados (ver o exemplo da Embraer), incorporados aos produtos e serviços finais. Uma taxa de câmbio adequada é requisito necessário, mas não suficiente para assegurar ganhos duradouros no comércio externo.
Diferentemente do tradicional, no comércio exterior 2.0, as proteções tarifárias de quase nada valem e mesmo as barreiras não tarifárias são de eficácia incerta, pois o caminho natural desse novo comércio são os acordos regionais ou bilaterais de livre comércio (ver o acordo de livre-comércio Estados Unidos-Europa, em gestação, com vistas, em outros objetivos, a isolar a China). Valem mais agora as normas negociadas nesses acordos e não as regras dos foros globais, como os da Organização Mundial do Comércio (OMC).
A nova realidade alija do palco do comércio internacional tanto a OMC quanto economias com baixa inserção nas cadeias de valor - caso do Brasil, cuja taxa de inserção é pouco superior a 10%, uma vez e meia menor do que a do México.
Mais cedo que mais tarde, a Organização Mundial do Comércio terá de ser reinventada e a política de comércio exterior dos países com baixa inserção nas cadeias de valor também.
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