Valor Econômico - 01/02
A tragédia da boate em Santa Maria alertou autoridades e empresários do ramo quanto à necessidade de maior atenção à segurança dos estabelecimentos. Em consequência disso, ocorreram blitze país afora, locais irregulares foram fechados e a Câmara dos Deputados montou comissão para formular uma legislação nacional sobre condições de segurança de casas noturnas e de espetáculos. Apenas em Manaus, 52 casas foram fechadas, mais da metade das existentes na cidade. No Rio de Janeiro, noticiava-se o fechamento de 11 estabelecimentos; em Maceió, outros 3. Em São Paulo, algumas casas suspenderam as atividades voluntariamente, com o declarado intento de ajustar suas condições para melhor atender ao público.
Em suma, alastrou-se pelo país uma onda de preocupação em relação a um problema que, a rigor, deveria merecer atenção corriqueira. O despertar para essa situação foi reconhecido pelo secretário de Cultura da cidade do Rio de Janeiro, Sérgio Sá Leitão, que tem sob sua jurisdição dez teatros, dos quais (pasmem) nove funcionando sem autorização, como noticiou "O Globo".
O tema da existência ou não de alvarás de funcionamento emergiu da tragédia gaúcha, já que a boate de Santa Maria estava com o seu vencido. Nisso, contudo, ela de forma alguma era peculiar. Só a cidade de São Paulo possui cerca de 600 estabelecimentos cujo alvará não foi expedido pela Prefeitura, como noticiou o Estadão. Tal situação gera insegurança para o público e inconformismo no empresariado do setor, que aguarda até quatro anos por um documento que, de acordo com a lei, deveria ser expedido em 30 dias.
Ineficácia de nossa burocracia causa perdas diversas
Decerto, diante de tal acúmulo de atrasos, torna-se impossível fechar os estabelecimentos que não dispõem de autorização - algo reconhecido pelo próprio prefeito, Fernando Haddad. Afinal, isso, além de economicamente desastroso, seria injusto, já que puniria empresários que não têm culpa pela lentidão da burocracia municipal. Aliás, mais do que injusto, um tal fechamento geraria situações kafkianas, já que muitos dos que não dispõem do documento apenas vivem tal situação por não se vergarem ao achaque de máfias instaladas na burocracia pública, como observado por Leonardo Sakamoto em seu blog.
Tendo isso em vista, uma medida anunciada pelo prefeito paulistano pode ser providencial, desde que implementada dando transparência aos dois lados do balcão. Após reunir-se com o empresariado do setor de restaurantes e casas de espetáculo, o prefeito anunciou que as datas de expedição dos alvarás de casas noturnas da capital paulista ficarão disponíveis na internet. A ideia será excelente se, além das informações relativas aos estabelecimentos, aparecerem aquelas relativas à parte da Prefeitura. Em que data foi dada entrada na documentação? Quanto tempo a prefeitura já levou na apreciação do pedido, sem que tenha ainda emitido o alvará? Até a emissão, quanto tempo levou?
A divulgação de dados como esses colocaria sob pressão não apenas os empresários da noite, mas a própria administração pública e, particularmente, os funcionários responsáveis pela expedição dos documentos. Poder-se-ia constatar, por exemplo, que um determinado estabelecimento obteve seu alvará em apenas 30 dias, enquanto outro já aguarda há 3 anos, apesar de ambos terem igualmente dado entrada em todos os documentos exigidos (um check list disso também poderia constar do site). O que explicaria a disparidade? Será que alguém tem amigos na máquina, ou cedeu ao achaque, enquanto o outro resistiu a ele, ou não é tão bem relacionado?
Investigações sobre casos como o de Santa Maria podem revelar que, ao longo do processo, uma autorização indevida de funcionamento (ou a demora para a expedição dela) pode ser a causa última de tragédias. Situações desse tipo tornam evidente que a corrupção, a prevaricação, a omissão ou a incompetência não prejudicam apenas os negócios, mas podem ser letais. Por isso, a transparência necessária não diz respeito apenas à situação dos regulados, mas também à conduta dos reguladores. Claro que se enfrentarão resistências de interesses entrincheirados, nada voltados ao atendimento do público, mas tal enfrentamento faz a diferença no sucesso dos governantes e em sua capacidade de inovar.
Há alguns anos, a Secretaria de Estado da Saúde paulista tentou implantar ponto eletrônico para médicos. Enfrentou forte reação e sabotagem: equipamentos de ponto danificados e acobertamento. Episódios recentes de esquemas de faltas de médicos que recebiam sem trabalhar geraram escândalos e permitiram um enrijecimento do controle sobre o comparecimento ao trabalho. O caso recente, do médico indiciado por omissão de socorro em decorrência ter faltado quando uma criança baleada precisou de seus serviços, mostra que certas situações - antes naturalizadas por setores do funcionalismo público) - já não encontram a mesma tolerância. Isto abriu espaço para que o prefeito Eduardo Paes anunciasse há poucos dias a implantação do ponto eletrônico na rede municipal de saúde.
Em todos esses casos, a informatização é uma ferramenta importante para aprimorar o controle, conferir transparência e subsidiar a ação de governantes, atores do sistema de justiça, a mídia e o público. Contudo, ela é apenas uma peça num sistema mais complexo de medidas, que requer mudanças legais e de postura de todos esses atores. Eventos dramáticos, como a morte da menina pela falta do médico, ou a catástrofe de Santa Maria, criam conjunturas críticas para as mudanças, mas isso requer celeridade dos governantes e perseverança da mídia na cobertura das providências. Sem isto, logo os episódios se tornam apenas dolorosas lembranças, sem capacidade de mobilizar apoios e vencer resistências.
A maior dessas resistências está na burocracia governamental, habitat propício à corrupção e à ineficiência, alimentando oportunismo e vencendo por cansaço o empreendedorismo e os sentimentos republicanos. Não raro, isso termina em tragédia. Está na hora da desburocratização e a eficácia da gestão ganharem centralidade na agenda dos governantes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário