Quem passou por uma depressão, ainda que leve, pode contar os benefícios da compensação química
Assim que a minha companheira de horário começou a ler a notícia na Bandnews FM, eu comecei a soltar faísca: "Brasileiros usam mais tranquilizantes do que europeus, aponta pesquisa da Proteste". Veja se eu posso: "O resultado de pesquisa conduzida em cinco países verificou que brasileiros demonstraram uso crônico significativamente mais alto principalmente de antidepressivos".
E daí? Quem disse que a frase "Os brasileiros demonstraram uso crônico significativamente mais alto principalmente de antidepressivos" tem necessariamente uma conotação negativa?
E se a gente olhasse por outro prisma e visse que somos mais abertos às novidades da ciência do que os arremedos de ostrogodos, capadócios e etruscos que ora habitam o continente europeu?
A tal pesquisa alerta para o fato de que 47% dos brasileiros chegam a fazer uso de ansiolíticos e antidepressivos. Meu Deus, mas isso só pode ser uma notícia maravilhosa!
Veja: 40 milhões de tapuias não têm acesso a água potável e 75 milhões não têm esgotos coletados. Se metade da população agora pode comprar medicamentos para tratar da psique, isso quer dizer que estamos ricos, não? Ora, não tenho culpa se os europeus preferem passar sem dormir. Minha situação já resolvi, pois meu sono me faz mais falta que os males que o remédio pode causar. Mesmo se de manhã eu não lembre meu nome ou onde estou e se agora tenha perdido o fio da sequência de pensamento que ia encadear a seguir.
Ah, sim, lembrei! Ia pinçar aqui mais uma frase contida na brilhante e abrangente reportagem sobre a pesquisa da Proteste e suas conclusões que, obviamente, não caminham no mesmo sentido de nenhum grupo ou sindicato do desimportante mundo da indústria que lida com fármacos e os agentes que gravitam ao seu redor não só no Brasil como no mundo.
A ela: "O uso destes medicamentos está associado a indivíduos com estilo de vida pouco saudável, que sofrem de insônia, são fumantes, sedentários, estressados, portadores de ansiedade ou depressão". É para bater palmas agora ou só depois de tomar meu ansiolítico?
Ainda bem que os brasileiros sedentários, estressados e que não conseguem levar uma vida saudável encontraram um meio para não se jogar do viaduto do Chá, não é mesmo? Graças a Deus que a evolução da ciência hoje oferece a essas pessoas que se sentem deslocadas (ou seja, quase todos nós que sofremos da angústia de ter nascido) maneiras de sobreviver ao dia, dormir e chegar ao dia seguinte. Isso deveria ser considerado um verdadeiro milagre. Quem passou por uma depressão, ainda que leve, pode dizer os benefícios da compensação química.
Mas por que colocar os europeus como paradigma? Se eu for imitar europeu, vou passar a semana sem tomar banho. Já viu como o garçom reage quando você pede um refrigerante light na Itália ou na França? Camarada tem ataque de riso na sua cara. Tente pedir um café com adoçante na Alemanha. Você terá de ir buscar o aspartame no supermercado da esquina.
Podendo, europeu não consome "industrializados" e não gosta de ir ao médico. É um asceta. Não é o consumista descarado, modelo Orlando feito a gente, que está indo na onda de ver até sem-teto fazer check-up no Fleury -mais um índice no IDH que sobe. Chupa David Cameron!
É evidente que uso indiscriminado e dependência são indesejáveis.
Mas algum Taleban, naturalista, militante do oxigênio puro, antitransgênico, ciclista radical vai vir me ensinar a viver a vida? Vai?
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