Rubem Braga era mais calado do que o Millôr, mas sua mítica rabugice era solúvel no álcool e na amizade. Os dois eram extraordinários conversadores, cultos, rápidos, engraçados
Rubem Braga me ligou.
— Você vai à Biblioteca Nacional?
Não, eu não ia à Biblioteca Nacional. O que é que eu ia fazer lá?
— Você não recebeu o convite? Hoje é o lançamento daquele programa de livros infantis para bibliotecas públicas. Nossos livros foram incluídos nisso.
Lembrei-me vagamente do convite, que jogara fora dias antes. Afinal, quem iria a uma cerimônia daquelas, cheia de autoridades e de discursos intermináveis?
— Então você acha que a gente não precisa ir?
— Lógico que não, Rubem! Vai ser uma chatice só. Eu com certeza não vou, tenho milhares de coisas para fazer, tenho que terminar um frila que já devia ter entregue há uma semana...
— Quantos exemplares dos nossos livros eles compraram?
Essa informação eu sabia onde encontrar: tinha acabado de receber correspondência da editora.
— Compraram 10 mil exemplares.
— Muita coisa. Temos que ir.
— Não vou, não. Estou toda enrolada! Estão me cobrando um frila, a empregada não veio, o marceneiro ficou de aparecer. Para piorar, estou sem carro.
— Isso não é problema, eu estou. Pego você aí daqui a meia hora.
— Mas Rubem...
Clic.
Havia como dizer não àquele homem? Claro que não. Larguei o que estava fazendo, bati o recorde mundial do banho tomado e, trinta minutos depois, estava na portaria. Chegamos à Biblioteca Nacional bem na hora. E aí fiquei muito contente de ter ido. Evidentemente, a maior parte dos nossos colegas pensara como Rubem. Assim, em vez da cerimônia chatíssima que imaginara, havia lá uma verdadeira festa, cheia de amigos que eu não via há um tempão.
Cumprimentei um aqui, outro ali, mal entabulei uma conversa e logo o Rubem estava ao meu lado, me pegando pelo braço.
— Você tinha toda razão, isso aqui está insuportável. Vamos embora.
— Agora que já viemos até aqui, vamos ficar mais um pouco? Só mais um pouquinho! O tempo de cumprimentar as pessoas.
— Não, é muito perigoso. Quando começarem os discursos nós não vamos conseguir escapar mais.
— Então vamos fazer o seguinte, eu fico mais um pouco e você vai.
— Nós viemos juntos.
— Mas daqui eu ainda vou ao “Jornal do Brasil”...
Era mentira. Da cerimônia eu tinha mesmo que voar para casa, para a pilha de trabalho que me esperava.
— Então vamos. Eu deixo você lá.
Assim é que eu fui parar na redação num dia em que não tinha absolutamente nada para fazer lá. Só achei graça na história porque a teimosia do Rubem era irresistível.
De outra vez, estávamos numa festa. Festa mesmo, não cerimônia na Biblioteca Nacional. Música, vozes, uma barulheira. Eu me sentei ao lado dele para conversar um pouco. Àquela altura, Rubem já estava bastante surdo.
— O que é que você disse? Fala mais alto!
Aumentei o volume.
— Não estou ouvindo nada. Fala mais alto!
Aumentei um pouco mais.
— Por que é que você está gritando desse jeito?
Houve também aquele dia em que nos encontramos e ele me disse:
— Vi uma orquídea linda e me lembrei de você na mesma hora.
Meu ego foi às alturas. Rubem Braga vira uma flor e se lembrara de mim!
— Ela tinha uns desenhinhos por dentro que eram iguais a um computador.
Sempre que passo em frente ao prédio da Barão da Torre penso na cobertura agrária e no seu antigo morador. De tantas pessoas que já se foram desde que tomei consciência do mundo, Rubem Braga é das ausências que mais sinto. Por quem era, pelo que escrevia, por dias que não esqueço. Às vezes Millôr e eu íamos para lá no fim da tarde: das poucas ocasiões em que eu, que falo muito, ficava quieta. Ou quase.
A conversa dos dois obedecia a um ritmo próprio, ia e vinha no tempo. Além da discussão e da análise das notícias do dia, havia meandros antigos povoados por personagens que eu não conhecia, vivendo em bares e restaurantes já desaparecidos; havia as viagens que os dois tinham feito juntos e gostavam de revisitar; havia histórias que já tinham contado inúmeras vezes, mas que ainda assim gostavam de ouvir de novo.
Rubem era mais calado do que o Millôr, mas sua mítica rabugice era solúvel no álcool e na amizade. Os dois eram extraordinários conversadores, cultos, rápidos, engraçados. Tinham, ambos, uma memória prodigiosa, que não servia só para lembrar os fatos que presenciaram. Às vezes o fio de um poema era puxado por acaso, por uma palavra ou circunstância: um começava a recitar, o outro terminava, ou terminavam os dois juntos, e ríamos todos, não porque fosse engraçado, mas pela alegria da lembrança.
A tarde caía, o sol se punha. Rubem acendia o abajur ao lado do sofá, eu servia uísque para um e para outro, botava mais gelo nos copos e agradecia à sorte que me havia levado até lá.
Não havia espetáculo em cartaz no Rio, ou em qualquer outra cidade do planeta, que se comparasse àquelas tardes de Ipanema.
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