O GLOBO - 05/01
Afunde-se, de vez, o sinistro Galeão e providencie-se uma porta de entrada digna do Rio e do maestro que lhe empresta seu nome
Cada ano que passa é um filete de tempo que escorre de nossas vidas. À meia-noite de 31 de dezembro a cidade era um feixe de nervos, dois milhões de pessoas vestidas de branco se comprimiam na areia de Copacabana. Nessa noite somos todos supersticiosos, suspensos à opacidade do futuro, ao mistério do que vem por aí. A presença mais intensa é a da esperança.
A respiração da cidade se acelerou, subiu da areia um alarido nervoso que se transformou em coro de entusiasmo quando, boquiabertos, vimos a explosão dos fogos e a chuva de ouro caindo no mar. Rompia o ano de 2013.
Esse momento se inscreverá na memória da cidade. Como não ter esperança no futuro do Rio que é capaz de produzir um evento da envergadura e da beleza do réveillon de Copacabana? Quem disse a bobagem que não estamos preparados para grandes eventos? Quando vai acabar a autoflagelação que nos leva a selecionar cuidadosamente os defeitos da cidade e calar sobre os seus feitos?
Esse réveillon não é banal, mesmo se, ao longo dos anos, nos acostumamos a integrá-lo ao nosso calendário do verão que começa quando se acende a árvore da Lagoa e termina na Quarta-Feira de Cinzas. Ele exprime o que a cidade já é e o que mais pode vir a ser. Não é banal reunir dois milhões de pessoas que, entre ritos diversos, orações e carnaval, celebram o amanhecer de um novo ano.
Classes, credos, gerações se misturam e a festa acaba sendo uma metáfora poderosa do amanhecer de uma nova cidade, aquela, sonhada por todos, sem violência, belíssima, festiva, com um sentido de grandeza associado à criatividade e à arte. Ali está representada toda a população carioca que acorre dos subúrbios, das favelas e dos bairros de classe média a esse bairro de classe alta que pertence a todos porque, no imaginário dos cariocas e no cartão de visitas com que nos apresentamos ao mundo, é o símbolo mesmo do Rio. Quem não sabe cantarolar Copacabana, princesinha do mar?
É preciso aprender a ler os sinais que a cidade emite para além de suas mazelas cotidianas, que não são só suas, mas participam do estilo de vida das grandes metrópoles, esse inferno equivocado e massacrante que ninguém sabe quem inventou e que se abate sobre todos. O Rio, depois de um longo período de depressão coletiva, está emitindo uma mensagem de esperança e de confiança em si que deve ser entendida e acolhida.
A esperança tem vida própria e nos expulsa das cavidades protetoras da memória onde se escondem fundadas decepções. É ela que, quando um cansaço imenso busca o testemunho das desilusões, arrogante, vira as costas e anuncia que viaja nua para o futuro. Explica que os otimistas podem se enganar e que os pessimistas já se enganam no ponto de partida. Antes de partir, anuncia: “Tenho uma boa notícia.” E é ela que todos querem ouvir, ela, que é a senhora do amanhecer.
Otimismo ou pessimismo ficam na plateia. A esperança dá um passo à frente, entra em cena. Sabe que tem influência sobre o que quer mudar. Faz acontecer.
Ora, morar no Rio é conviver em permanência com luzes e sombras, alegrias e sustos, o que exige de todos, como condição de sobrevivência, uma esperança constante de conseguir que a excelência que a cidade demonstra em certos momentos se sobreponha ao descaso lá onde ele mina o cotidiano. Um belo desafio para o Ano Novo.
Se a noite de Copacabana foi deslumbrante, tivemos também amargos momentos de trevas: no dia mais quente do ano, o Aeroporto do Galeão apagou-se. Naufragou. Esse sinistro Galeão naufragado é, literalmente, a face sombria da cidade.
Lembrem-se as autoridades responsáveis queTom Jobim não merece ter seu nome enxovalhado.Tom era luminoso. Quem não teve a sorte de ser seu contemporâneo veja no magistral filme de Nelson Pereira dos Santos, “A música segundo Tom Jobim”, o quanto a cidade lhe deve. Precisamos ter um aeroporto à altura de sua música, belo como o réveillon de Copacabana, alinhado aos padrões de qualidade de que o Rio vem sendo capaz e que impressionam o mundo. O Rio que é, também, a entrada do Brasil.
Afunde-se, de vez, o sinistro Galeão e providencie-se uma porta de entrada digna do momento que o Rio está vivendo e do maestro que lhe empresta seu nome. Tampouco nós e os que nos visitam merecemos tamanho desrespeito.
São essas zonas de sombra que servem de argumento às suspeitas, infundadas, sobre a capacidade da cidade de acolher grandes eventos.
Tenho um voto e uma esperança para o ano que começa: que Tom Jobim nos proteja e que as luzes feéricas do 31 de dezembro continuem a iluminar toda a cidade.
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