O GLOBO - 26/01
"O som ao redor", uma obra prima realizada pelo cineasta pernambucano Kleber Mendonça, talvez seja o melhor filme brasileiro dos últimos anos
Há quinze dias, saudei aqui nesse cantinho de O Globo a chegada do verão. Anunciei com entusiasmo que o sol brilhava imperial no céu azul e as moças ficavam mais bonitas, esses clichês da estação. No exato sábado em que o texto foi publicado, nuvens negras cobriram o horizonte, começou a chover intermitentemente. Desde então, nunca mais o sol voltou.
Agora, quando escrevo com antecedência o texto deste sábado, o sol brilha de novo e o verão parece ter voltado a abrir sua barraca na cidade. Mas, como não posso garantir sua permanência, não quero me sentir responsável pelo fracasso do sol. Acho melhor fingir que não o vejo e sugerir ao leitor programas que não necessitem do calor de sua presença. Como por exemplo ir ao cinema.
Nesse período do ano, a oferta de filmes é abrilhantada pelos candidatos ao Oscar, uma competição à qual nossos jornais e televisões dão enorme atenção e vasta publicidade. Em cartaz, estão filmes interessantes, belos ou relevantes, como "Aventuras de Pi", "Amor", "Django livre", "Lincoln", "O mestre" e sobretudo "O som ao redor", uma obra prima realizada pelo cineasta pernambucano Kleber Mendonça.
Este talvez seja o melhor filme brasileiro dos últimos anos, não sei bem desde quando. Com excelentes intérpretes locais, narrado de forma rigorosa e contundente, desenvolvendo uma surpreendente dramaturgia nada convencional, "O som ao redor" é um extraordinário retrato da classe média brasileira de hoje, sem discurso e sem demagogia, tendo a importância para a compreensão do país que tiveram "Central do Brasil", "Cidade de Deus" ou os dois "Tropa de Elite".
À disposição do público, estão também algumas comédias brasileiras de enorme sucesso popular e rejeição por parte de nossas elites intelectuais, como "Os penetras", "Assim que a sorte nos separe" ou "De pernas para o ar 2". São comédias modernas que sucedem aquelas sempre tratadas depreciativamente como "chanchadas".
Parece que a palavra vem do italiano, "cianciatta", que na linguagem popular romana significa qualquer coisa como papo furado, conversa fiada ou jogada fora. Era assim que os ítalo-paulistas da Vera Cruz e seus técnicos importados se referiam às comédias cariocas nos anos 1950. Moniz Vianna, lendário crítico do Correio da Manhã, foi quem a abrasileirou para chanchada.
Desde então, a palavra tem servido a quem quer falar mal do cinema nacional, adaptando-a através do tempo para porno-chanchada, neo-chanchada ou globo-chanchada. A chanchada já ganhou também a internet e a dramaturgia alternativa da televisão paga, como em "Porta dos fundos" ou "Meu passado me condena", entre outros programas. Daqui a pouco, vai certamente aparecer a web-chanchada.
O cinema não foi inventado para ser instrumento de uma ideia única que se impõe às outras. Um filme pode fazer pensar, emocionar, divertir ou simplesmente encantar. Os melhores, quase sempre, misturam bem tudo isso. Mas nenhuma lei obriga a população a ir ver esse ou aquele filme, ela vai porque é aquele o tipo de filme que escolheu ver e deseja usufruir. Só se corrige isso trocando de povo, o que às vezes parece ser o desejo de nossa direita culta.
Todo mundo tem o direito (e às vezes o dever) de querer mudar o gosto popular. Mas ninguém tem o direito de censurar esse gosto, impedir que ele se realize e satisfaça quem o procura, difamá-lo.
Mas não é verdade que só as comédias fazem sucesso junto a nosso público. Consultem as cinco maiores bilheterias do cinema brasileiro, nestes últimos vinte anos: 1º - "Tropa de Elite 2" (relevante documento político contemporâneo); 2º - "Se eu fosse você 2" (comédia sofisticada que poderia ter sido dirigida por Billy Wilder, por exemplo); 3º - "Dois filhos de Francisco" (drama familiar e musical sertanejo); 4º - "Nosso lar" (filme de base religiosa e mística); 5º - "Carandiru" (sobre o trágico massacre na cadeia paulista). O público brasileiro compreende e adere à diversidade do nosso cinema, basta que o filme seja bom. E bem lançado.
No final dos anos 1980, durante um festival de Cannes, Ettore Scola, o grande cineasta que atravessou todas as tendências do cinema italiano desde o pós-guerra, deu conhecimento de um ensaio em que dizia que as comédias italianas serviam muito melhor à compreesão do que era a Itália da época do que as obras primas do neorealismo. Isso não queria dizer que as obras primas do neorealismo não deviam ter sido feitas, muito pelo contrário. Quer dizer apenas que o imaginário humano pode se manifestar de várias formas e fazer história sem que o contemporâneo perceba. O que aliás é uma característica da história.
O título desse texto é tomado do livro homônimo de Sergio Augusto, lançado em agosto de 1989, que por sua vez o tomou de uma comédia carioca de 1946, um dos primeiros sucesso da Atlantida. O livro de Sergio Augusto nos ensina o que nos havia escapado de importante nas chanchadas de Vargas a Kubistchek. Um toque de que é preciso levar tudo a sério, sem perder nunca a alegria. Como num verão permanente, digamos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário