FOLHA DE SP - 26/01
Em quantos voos o pobre homem não teria notado a rejeição na face de idiotas como este que vos escreve
Sofro para encaixar as pernas nos aviões atuais. Se as deixo juntas, meus joelhos ficam prensados contra as costas do banco da frente; quando tento abri-las, incomodo quem está ao meu lado.
Num voo para Manaus, o único lugar que consegui foi na fileira do meio. Na janela, estava um rapaz de camiseta e boné, com as pernas maiores do que as minhas.
Enquanto meus companheiros de infortúnio entravam em fila ordenada e arrumavam seus pertences nos bagageiros, só não rezei para que o banco à minha direita permanecesse vazio porque não compreendo como os crédulos podem imaginar a existência de um ser superior com discernimento, perspicácia e tempo livre para as pequenas desventuras de cada um dos 7 bilhões de seres humanos espalhados pelo planeta.
Quando vislumbrei na fila um passageiro com mais de cem quilos, tremi nas bases. Não sei se você, leitor, é menos azarado, mas a meu lado jamais senta uma mulher bonita e agradável. No embarque, quando vejo alguma com tais atributos, tenho certeza absoluta de que a meu lado não ficará.
Como estava no fundo do avião, a esperança de que meu viçoso companheiro de viagem encontrasse seu assento mais à frente só me abandonou quando ele parou sorridente:
- Lamento, mas você foi sorteado para sofrer esse aperto junto comigo, nas próximas três horas e quarenta e cinco minutos.
A simpatia foi uma punhalada em meu coração. Para chegar se desculpando daquele jeito, em quantos voos o pobre homem não teria notado a rejeição estampada na face de idiotas como este que vos escreve.
Apesar da culpa, reconheci que não seria fácil viajar entre o rapaz de boné, com uma das pernas invadindo o espaço microscópico teoricamente reservado para mim, e o passageiro de corpo avantajado, que me forçava a manter encolhidos o braço e o ombro.
Entre os dois, onde apoiar o computador para terminar o trabalho? Situação pior, só a do cidadão à minha direita, com o corpo que transbordava os limites da poltrona.
Com muita dificuldade, consegui acomodar o computador no colo, numa posição desajeitada que me permitia enxergar a tela e tocar no teclado, contanto que permanecesse imóvel.
Às tantas, meu vizinho transbordante me cutucou:
- Acabei de ler esse seu livro, "Carcereiros". Você devia escrever sobre os spas.
- Spa?
- Porque os spas são iguais às cadeias.
Ele havia ganhado mais de 30 quilos nas últimas décadas. Preocupados, a esposa e os filhos insistiram durante anos para que se internasse num spa. Diante da resistência do principal interessado, planejaram uma chantagem terrível: não levariam mais os netos para ver o avô.
- Quando me deixaram na porta do spa com a malinha, senti que nunca mais recuperaria a liberdade. Deu vontade de chorar.
A rotina diária confirmou suas piores expectativas:
- No almoço, cem gramas de frango grelhado, meia cenoura cozida e duas folhas de alface. No jantar, um caldo tão ralo que nem a sede matava. De manhã, um pedacinho de mamão, uma fatia de pão de forma com requeijão com gosto de isopor e uma xícara de chá.
Depois do café, caminhada ao ar livre e uma hora de hidroginástica. À tarde, exercícios na academia. No terceiro dia, sentiu o organismo fraquejar; no quarto, simulou um quadro gripal para passar o dia na cama. Em uma semana, perdeu três quilos, mas ficou revoltado.
Tinha vivido na pobreza extrema quando criança. Trabalhar até ficar bem de vida para passar fome novamente não fazia sentido para ele.
Nesse estado de espírito, perguntou para o guarda da noite quem vendia os melhores salgadinhos da cidade. O rapaz lhe disse que vinha gente de longe atrás das empadas de palmito e coxinhas de frango com catupiry que uma senhora fazia. Meu vizinho de poltrona não se fez de rogado:
- Subornei o guarda para me trazer meia dúzia de cada.
Nos dias seguintes cometeu uma imprudência, no entanto:
- Caí na besteira de oferecer para outro gordo que também passava mal de tanta fome.
Infelizmente, o companheiro não respeitou o sigilo combinado:
- Começou uma romaria noturna no meu quarto. Precisei comprar duas dúzias por dia. Vinha tanta gente que fui obrigado a pregar um aviso na porta: "Depois das 23 horas, não atendo mais ninguém".
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