O GLOBO - 16/01
O que se espera, dos órgãos competentes, é a preservação da liberdade religiosa, uma das joias de nossa diversidade cultural
O Brasil é uma república teocrática e de cunho fundamentalista. Eis a conclusão a que chegaria um marciano, se sua leitura dependesse exclusivamente da tevê aberta no país, captada (digamos) nas terras baixas do planeta vermelho, onde trabalha hoje o robô Curiosity.
A omissão do poder público nesses trinta anos é de tal ordem espetacular no setor que não deixa margem a leituras inocentes ou marcianas. Num país como o Brasil, onde a educação e a saúde públicas lutam para obter patamares de dignidade, a tevê aberta veicula, dia e noite, a difusão de “milagres”, fora da medicina, com um sotaque velado ou acintoso de grave intolerância, sobretudo, mas não exclusivamente, diante das religiões afro-brasileiras, pintadas em cores primitivas e deploráveis.
O que se espera, além do natural cumprimento da lei, por parte dos órgãos competentes, é a preservação da liberdade religiosa, uma das joias de nossa diversidade cultural. A imposição diuturna daqueles programas de rádio e tevê fere em cheio os princípios fundamentais da Carta Magna e cria bolsões de preconceito inadmissíveis.
Quero enfatizar que todas as igrejas merecem respeito, incluindo as que acabo de criticar. Respeito aos fiéis que vivem sua autêntica manifestação de fé. Eis o que não se pode absolutamente perder de vista. Porque toda a pratica religiosa é portadora de um conjunto simbólico de impacto e adesão subjetiva. Posso discordar de um ou de outro conteúdo ideológico, mas a oposição frontal a que me refiro surge quando aspectos antidemocráticos (e extrarreligiosos) vão de encontro aos princípios republicanos mais elementares.
Felizmente, não faltam no Brasil coletivos que trabalham para o fortalecimento do diálogo de tradições diversas. Na esfera acadêmica, acompanho com entusiasmo o programa de ciências da religião da Universidade Federal de Juiz de Fora. Trata-se de verdadeiro laboratório de reflexão, de que se destaca o teólogo leigo Faustino Teixeira. Todas as denominações têm espaço na estrutura do curso, no corpo docente e nas linhas de pesquisa. A diversidade da expressão católica e evangélica é acolhida sem restrição, como legítimos objetos de estudo, a que se incluem, juntamente com as religiões africanas, o islamismo, o judaísmo, o budismo e o hinduísmo.
Laboratório, portanto, da diversidade, considerada não como planta exótica, mas no viés da religião comparada, segundo um gesto interdisciplinar raro na universidade brasileira, sobretudo quando se trata de estudos da religião. Faustino Teixeira organizou o livro “Nas teias da delicadeza”, no qual defende o respeito ao fenômeno religioso, abordagem que requer a delicadeza como princípio e fim da pesquisa. Atitude visceralmente oposta à do proselitismo vulgar.
Feitas as ressalvas, posso dizer que não existe salvação, do corpo e da alma, fora do espírito democrático.
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