"É óbvio que não vou fazer aqui um julgamento da Índia. Países são complexos, heterogêneos, e juízos assim costumam revelar tanto ou mais de si do que de seu objeto. Mas vou contar minha experiência em Délhi, sob esse aspecto da misoginia.” Era esse o segundo parágrafo da minha última coluna, em que, afetado pelo estupro de uma jovem, contei parte de minha experiência na cidade de Nova Délhi. Apesar de o parágrafo deixar claro que eu não faria um julgamento civilizatório sobre a Índia, de mostrar consciência quanto ao problema do etnocentrismo e de limitar o objeto do relato a um aspecto determinado (a misoginia) de uma cidade determinada (Nova Délhi), nada disso impediu que muitos leitores me escrevessem criticando, justamente, meus supostos etnocentrismo, generalização e redução drástica da complexidade de um país (entre outros que me escreveram fazendo excelentes comentários).
Esse tipo de cegueira seletiva, que faz com que não se registrem certas passagens, costuma acontecer aos leitores que se sentem imaginariamente implicados por um texto. A ameaça imaginária produz um açodamento, e logo uma necessidade de contra-ataque que termina numa projeção sem outro fundamento que a própria fantasia de quem a escreve. Certa vez eu escrevi que as drogas e a monogamia têm um estatuto análogo na nossa cultura — uma mistura de tabu e hipocrisia —, apenas simetricamente oposto: as drogas, quase todo mundo nega, mas muita gente usa; a monogamia, muita gente exige, mas quase todo mundo descumpre. No dia seguinte recebo um e-mail com a singela frase: “Você é um verdadeiro corno”.
Estive na Índia por 30 dias, em 2007. Antonia, com quem sou casado, ainda continuou lá por duas semanas depois que fui embora. Estive em Délhi, Mumbai, em algumas cidades do Rajastão, Agra, Varanasi, Galta, Elora e Ajanta, entre outros lugares de que já não me recordo. Eu não gostei da Índia em geral, mas foi a viagem mais transformadora da minha vida, por motivos que não cabem aqui. A Índia foi um pouco como Lacan é para mim: eu não gosto, mas eu adoro (notem que isso não é o mesmo que dizer: “Eu não gosto, eu adoro”: não se trata de intensificação, e sim de descontinuidade entre, talvez, o prazer e o gozo). Mas eu não escrevi na coluna passada que não gostei da Índia em geral, e se não o fiz foi justamente porque considero esse juízo etnocêntrico e idiossincrático. Com efeito, medida pela régua do ideal de nossa vida burguesa, a Índia é, por todos os lugares em que estive, precária: a pobreza é imensa, há muita gente vivendo nas ruas, há muita sujeira, a urbanização é caótica (um guia me disse, por exemplo, que em Délhi há cerca de 20 semáforos numa cidade de mais de 11.000.000 de habitantes) etc. Mas não foi sobre nada disso que escrevi.
Meu relato tinha um estatuto próximo àquele, por exemplo, de um repórter estrangeiro que tivesse vindo ao Rio de Janeiro fazer uma matéria sobre as nossas prisões. Seu relato seria tenebroso, mas não faria sentido acusá-lo de estar reduzindo a complexidade de uma cidade, muito menos de um país, pois seu objetivo não era dar conta dessa complexidade geral, e sim de seu aspecto delimitado. Assim, não faz sentido me chamarem à complexidade, ou dizerem coisas como “mas também há misoginia no Rio, em países da Europa etc.”, como li de vários leitores. Eu nunca disse que não há.
Já admiti aqui mesmo nessa coluna ser um mau viajante. Mas o sou porque radicalizo, no campo do outro, aquilo que já sou em meu país: estudo muito, sou tomado por um desejo intenso de entender a civilização que estou visitando. Foi assim quando estive na China, no Tibete, no Japão, e também na Índia. Li alguns dos maiores pensadores do ocidente, como Louis Dumont (“Homo hierarchicus” e “O individualismo”) e Octavio Paz (“Vislumbres da Índia”), alguma literatura indiana clássica e contemporânea (Jumpa Lahiri e Sukehtu Metha), além de arte em geral (no cinema, por exemplo, Satyajit Ray e Mira Nair). Se eu tivesse me proposto a falar da Índia, mobilizaria esse repertório; mas, repito, essa nunca foi a minha intenção. E nem seria, pois o que estudei não me torna apto a realizar, sobre a Índia, a tarefa que define a perspectiva antropológica: a ciência social do outro (atenção para o sentido do genitivo).
Uma última palavra sobre os leitores. Recebi, de um deles, um comentário que dizia ter sido essa a única coluna minha que ele fora capaz de ler até o fim, porque não continha “pedantismos, nem rebuscamentos pernósticos”. A moralização da dificuldade confirma o que eu disse mais acima sobre as ameaças imaginárias. “Pedante” é o sujeito que entende o que você não é capaz de entender.
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