FOLHA DE SP - 24/01
Uma caraterística da telenovela talvez produza atores sempre atentos ao retorno da platéia
Passei um mês em Nova York -escrevendo, lendo e frequentando teatros, cinemas e galerias. Aproveitei para ver ao vivo alguns atores de cinema ou de televisão. Por que eu não estaria a fim de "conhecer os corpos" de atores que dão vida a ficções que me tocam?
No teatro, nunca desdenho uma primeira fileira, de onde é fácil ouvir a respiração e enxergar as gotas de suor e de saliva que constituem, para mim, o charme da presença material, física do ator.
Vi Jessica Chastain (a imperdível protagonista de "A Hora Mais Escura", de Kathryn Bigelow, que estreará em 15 de fevereiro), David Strathairn e Dan Stevens (o Matthew Crawley de "Downton Abbey" -agora no GNT), todos em "The Heiress" ("A Herdeira"), de R. e A. Goetz, no Walter Kerr Theatre. E vi Scarlett Johansson em "Cat on a Hot Tin Roof" ("Gata em Teto de Zinco Quente"), de Tennessee Williams, no Richard Rodgers Theatre.
Ao entrarem no palco, os atores eram recebidos por aplausos que sustavam a ação: afinal, o público estava lá para vê-los. Mas, fora essas breves suspensões, todos eles seguiam o que é hoje um padrão de atuação: uma sólida quarta parede. Explico.
No teatro, o palco é delimitado por três paredes, a quarta sendo a que está faltando, de modo que a plateia possa enxergar a ação. Os atores podem aproveitar dessa abertura para interagir com o público (lembrando assim a todos que se trata de uma peça) ou, no extremo oposto, agir como se eles estivessem sozinhos, entre quatro paredes.
Hoje, em regra, o ator (ainda mais se for de cinema) tende a atuar assim, entre quatro paredes, como se não houvesse câmera nem plateia. A ponto que uma cumplicidade com o público parece intencional -um jeito de transgredir o padrão dominante, de nos fazer rir ou de nos distanciar da história representada.
A experiência foi diferente quando fui ver Al Pacino em "Glengarry Glen Ross", de David Mamet, no Schoenfeld Theatre. Aqui, a atuação de Al Pacino era um grande aparte endereçado ao público. Mesmo nos diálogos com os outros atores, ele olhava e falava para nós.
Não vou me queixar de que, num diálogo comigo (e 800 outros, claro), ele usasse as manhas de Michael Corleone, Frank ("Perfume de Mulher") ou Lefty ("Donnie Brasco"). Afinal, eu estava lá para isso, não é?
No Brasil, também, já vi atores famosos do cinema e da televisão atuando no teatro. Nunca vi um deles dar uma de Al Pacino e quebrar a quarta parede para oferecer ao público um banho de presença estrelada.
Em compensação, fico quase sempre com a impressão de que, no Brasil, os atores mantêm uma conexão com a plateia que abre uma fresta na famosa quarta parede.
É óbvio que não estou me referindo a peças nas quais, de maneira intencional, os atores interagem com a plateia como se não houvesse quarta parede. É óbvio também que não estou falando de rupturas escrachadas da quarta parede, como, sei lá, apartes ou piscadinhas engraçadas para o público.
Ao contrário, gostaria de descrever (mas não consigo) uma impressão sutil de que os atores, aqui no Brasil, atuam PARA mim. Ou seja, que a presença da plateia pesa no que acontece no palco.
Se essa minha impressão capta alguma realidade, qual seria uma origem possível do fenômeno? É difícil superestimar a importância da telenovela na cultura nacional (e, por consequência, na formação dos atores). Ora, há uma especificidade da novela que dota a quarta parede de uma leve, mas constante transparência. Qual?
A novela é escrita enquanto está sendo gravada e vai ao ar -ela é um pouco herdeira da "commedia dell'arte", uma gloriosa forma de teatro em que os atores improvisavam a partir de uma sinopse.
A primeira consequência disso é que, na novela, como em nenhum outro gênero, a relevância de um personagem e seu destino na história podem depender da recepção que o público lhe reserva.
O ator sabe que, se seu personagem conquistar o público (pelo bem ou pelo mal), ele ganhará relevância nos capítulos seguintes (um personagem pode ser secundário na sinopse e se tornar central ao longo da novela). Ou seja, o caráter inacabado do texto impõe ao ator uma tarefa que corrói a opacidade da quarta parede: a tarefa de ser especialmente apreciado (gostado ou odiado, tanto faz).
Em suma, talvez a telenovela, por sua relevância e por essa sua caraterística, produza, entre nós, atores particularmente atentos ao retorno da plateia. Não sei se é um bem ou um mal.
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