O ESTADÃO - 19/12
Zapeando a televisão num dia chuvoso me deparei com um apresentador de programa de auditório fazendo propaganda de hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS), do governo federal. Tirando a dificuldade de leitura do teleprompter, comum entre os apresentadores no momento do merchandising, fiquei pensando sobre o significado de uma propaganda oficial que, a meu ver, tentava defender o indefensável: a excelência na prestação de um serviço público, sobretudo na área da saúde. Embora possa estar enganado, acredito que a grande maioria dos brasileiros deva considerar, na média, que a prestação dos serviços públicos federais, estaduais e municipais é de baixa qualidade. Não será uma campanha publicitária, portanto, que vai mudar essa opinião - pelo menos é isso que esperamos de contribuintes racionais.
É tentadora a ideia de demonizar campanhas publicitárias oficiais realizadas pelo governo federal. Em geral, quem delas reclama tem uma orientação ideológica predefinida. Embora eu fique incomodado, como contribuinte, quando assisto a uma propaganda oficial, sou capaz de entender a máxima do "quem não se comunica se estrumbica". Como qualquer organização privada, orientada para o lucro ou não, não há razão alguma para condenar um órgão do Executivo ou uma empresa estatal pelo fato de fazer propaganda. Até porque ela gera renda e movimenta o mercado publicitário, grande empregador de pessoas e bom fazedor de milionários. É legítimo, portanto, que o governo federal faça suas propagandas.
O que me incomodou naquela propaganda, especificamente, foi a sua mensagem. Na realidade, ela confirmou uma desconfiança que passei a ter desde que as propagandas do governo Dilma Rousseff começaram a ser veiculadas. Parece-me ter havido uma mudança na orientação das propagandas oficiais quando se compara o governo atual com a gestão Lula. O governo Lula foi o grande criador da ideia de usar campanhas publicitárias como forma de consolidar boa imagem do governo federal, ou de suas empresas, na cabeça da população. Antes do governo Lula, embora já se vissem campanhas publicitárias, ainda se usava muito o modelo dos pronunciamentos oficiais, os quais eram, e ainda são, solenemente ignorados pela população.
O governo Lula, no entanto, não se aventurou a usar campanhas publicitárias para vender à população a excelência da prestação dos serviços públicos. Tratava-se de propagandas para enfatizar políticas que aquele governo julgava como diferenciadas e que deveriam ser mostradas a toda a população, e não somente aos públicos beneficiados. O governo Dilma, por alguma razão sobre a qual posso apenas especular, decidiu por fazer propagandas de órgãos do governo federal que prestam serviços à população. É uma estratégia, imagino, de grande risco, do ponto de vista de popularidade, por um lado, mas, mais importante, de credibilidade, por outro.
Não tenho a intenção de elaborar argumentos retrógrados ou explicitamente ideológicos em relação a esse tema. Mas será que é uma boa prática, do ponto de vista moral, um governo, seja ele qual for, tentar vender via campanha publicitária uma excelência inexistente de um serviço público?
Do jeito que as coisas vão, amanhã poderemos ser obrigados a assistir a propaganda do Ministério da Defesa falando maravilhas do nosso serviço de controle de fronteiras, do Ministério da Educação bradando as qualidades da nossa educação pública no ensino fundamental, da Infraero ovacionando a grande qualidade dos nossos aeroportos, das Polícias Militares dos Estados aplaudindo os elevados níveis de segurança coletiva, da Receita Federal exaltando o Brasil como um país sem burocracias e de grande simplicidade tributária e do Ministério de Minas e Energia garantindo que a política de antecipação das concessões das elétricas não vai ter impacto na geração de energia elétrica no longo prazo.
Numa situação como essa, embora aqui caricaturada, um alienígena que caia no Brasil e opte por conhecer o nosso país somente por intermédio da televisão vai enxergar outro país. Provavelmente, vai querer mudar-se para cá, porque aqui ele não precisa pagar para ter acesso à rede privada de saúde, uma vez que o sistema público oferece um serviço de muito melhor qualidade. Pobre alienígena.
A questão da legitimidade de uma ação de mídia pode ser apresentada sob outra perspectiva. Pessoalmente, sou favorável às restrições à publicidade de bebidas alcoólicas e cigarros. Embora defenda a ideia de que o consumidor é soberano para decidir o que quer consumir, de drogas a jogos de azar, sei que minha filha de 2 anos não deve ser exposta a programas que não sejam recomendados para pessoas da idade dela. É um cerceamento da liberdade individual, sem dúvida, mas necessário em casos específicos.
Até onde eu saiba, as empresas privadas estão sujeitas a restrições no uso de publicidade, sobretudo porque elas sabem que pagarão caro por inverdades ditas, seja pela marcação da sociedade civil ou por investigação de organismos como o Ministério Público. E quanto ao Estado brasileiro?
Quando um governo começa a utilizar campanhas publicitárias para exaltar as qualidades da prestação de um serviço público que são notoriamente inexistentes, sem nenhum constrangimento, parece-me que estamos criando um problema. Tenho a impressão de que o governo brasileiro está fazendo experimentações muito arriscadas, soltando balões de ensaio em ações específicas, que visam a transformar em certo o que é errado. Essa campanha publicitária do SUS parece ser um caso desses, em que a tênue separação entre certo e errado foi rompida.
Não é correto uma revista estrangeira pedir a cabeça de um ministro brasileiro. Mas também não é prometer algo que não se pode entregar. De boas intenções o inferno está cheio.
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