O GLOBO - 20/11
Era uma vez uma ilha, perdida nos mares do Grande Norte, situada além do que a imaginação possa conceber. Era tão fria que a chamavam Iceland, terra do gelo. Em nossa língua, Islândia. Viviam nela cerca de 300 mil habitantes: um lugar próspero, rico para os padrões da época, uma gente bonita e saudável. Com um regime democrático estável, controlado pela população, dispunha de excelentes sistemas de saúde e de educação, boa alimentação, baixa criminalidade, alta esperança de vida, desenvolvimento econômico sustentável, regulado por diversas agências públicas.
Nada indicava que algo de mal poderia ocorrer naquela Terra da Promissão. No entanto, trágicos fatos ali tiveram lugar e sua recordação talvez possa ajudar a refletir sobre a crise que angustia o mundo atual.
Quando e como exatamente esta história aconteceu? Os arqueólogos mais reputados, com base em evidências e documentos, atestam que as coisas começaram a degringolar na virada no século XX para o século XXI, há centenas de anos...
Disseminaram-se, então, pela ilha, trazidas por mercadores estrangeiros, fantásticas promessas. Baseavam-se em três palavras-chave: desregulamentar, privatizar, internacionalizar. Se fossem capazes de enveredar por este caminho, os ilhéus se tornariam muito ricos, e em pouco tempo.
Persuasivos eram aqueles mercadores, e o povo resolveu segui-los. Os bancos públicos foram privatizados, e as empresas internacionais, autorizadas a explorar os recursos naturais. As agências reguladoras, enfraquecidas, definharam. Os dinheiros agora circulavam em abundância, a Bolsa de Valores galopava e a construção civil alcançava níveis frenéticos. Houve espantosos fenômenos, como o fato de os bancos privatizados contraírem empréstimos equivalentes a dez vezes ao que então se chamava o PNB, ou seja, a soma de todos os bens e serviços produzidos no país.
Vozes prudentes murmuravam: aquilo não podia dar certo.
E não deu.
Num belo dia, no ano de 2008, estourou a crise. Medonha. Os bancos faliram. A Bolsa despencou. Cessaram as atividades econômicas. O desemprego disparou. A ilha descobriu-se endividada até o último fio de cabelo.
Vieram então homens probos e pediram calma. Numa língua ininteligível, explicaram tudo: os antecedentes e os consequentes. As coisas se resolveriam através de uma nova palavra mágica: austeridade. Instituições e bancos internacionais ajudariam. Os problemas seriam equacionados, embora fosse necessário apertar os cintos. Claro, muitos perderiam casas, haveres, empregos, futuro e tudo o mais. As dívidas, porém, seriam pagas, e a honra, salva. O pacote, embrulhado com laço de fita e aprovado pelo Parlamento, virou lei. Em 2009, a fatura parecia liquidada.
Entretanto, as gentes não mais se deixaram persuadir.
Queriam entender melhor como pudera uma terra tão próspera tornar-se em menos de dez anos uma nação de mendigos. Não haveria responsáveis?
Foram às ruas, com apitos e bumbos, batendo talheres em panelas vazias. Pulando e gritando, cercaram o Parlamento, atirando ovos e tomates nos representantes. Não houve polícia capaz de segurar aquela ira.
Corria o ano de 2010 quando a pressão das multidões organizadas impôs um referendo. A Lei do Parlamento foi recusada por 93% dos votos. A dívida, contraída por alguns, não seria paga por todos. Era preciso zerá-la e recomeçar.
E teve início a investigação sobre as responsabilidades. Altos executivos e gerentes dos bancos foram para a cadeia. Os banqueiros que puderam, fugiram, como ratos de um barco à deriva. Ao mesmo tempo, decidiu-se redigir uma nova Constituição, capaz de proteger a nação de outros aventureiros.
Por toda parte, organizavam-se as gentes. Em cada distrito, uma assembleia. Participativa e consciente de que a Coisa Pública deveria ser tratada com atenção e cuidado. Entre pouco mais de 500 candidatos, sem prévia filiação partidária (os antigos partidos tornaram-se suspeitos), elegeram-se 25 representantes. Foram eles que, ouvindo as assembleias locais, autônomas em relação ao Estado e aos partidos, construíram uma nova Carta Magna, a ser aprovada em outro referendo popular. Regulação e controle, palavras esquecidas, retornaram, devidamente valorizadas. A primeira consequência foi a renacionalização dos bancos, baseada no conceito de que o dinheiro de todos é muito importante para ser deixado em mãos de poucos.
Aquele povo mostrou que, por vezes, como dizia E. Morin, o improvável acontece. Demitiu-se um governo. Refez-se o Parlamento. Exercitou-se a autonomia. Foi escrita uma nova Constituição, preocupada com as pessoas e não com os dinheiros. E a prosperidade voltou, atestada por bons resultados em 2011 e 2012.
Uma revolução. Pacífica e democrática.
Mas realizada há tantos séculos e numa terra tão longínqua... Talvez por isso se fale tão pouco dela e dos maravilhosos eventos que aconteceram na bela Islândia. Uma ilha da utopia.
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