ZERO HORA - 10/10
No táxi, o rádio submete à vontade do motorista. Como o assunto era futebol, dissociei. Mas despertei do devaneio por força de um som inusual: a narrativa histérica, em espanhol, de um gol, reproduzida por um programa de comentários desportivos. Escutar um gol em minha língua mãe abriu um arquivo esquecido de lembranças e sentimentos ligados a esse som.
Vivia no Uruguai na década de 1960. Seguidamente ia almoçar na casa de uma espécie de tio, cujo filho, ao crescer, tornou-se juiz de futebol. Eles acompanhavam as partidas com paixão, os gols eram praticamente uivados pelo locutor. Eu brincava por ali, à escuta dessa trilha sonora que mais de 40 anos depois me tomou de assalto.
O gol em espanhol reavivou a memória de todo um cenário: a imagem borrada da TV preto e branco, um maravilhoso aparelho de fazer soda, a detestável sopa fria de frutas, meu amigo Muki, o cachorro da casa.
São Paulo, para onde me levaram um tempo depois: devo aprender português. Repita: João perdeu o balão, João é um chorão. Lição impossível. Quem chorava era eu: “Nunca vou conseguir falar isso!”. Aprendi, crianças são permeáveis ao som das línguas, deixam-se colonizar. Agora, como canta Caetano em língua, “Adoro nomes / nomes em ã / de coisa como rã e ímã”. O português gaúcho que tive que falar depois me soava rude, hoje é meu tom. Minhas pátrias são os sons das minhas línguas.
Ao falar, letra e música são uma só. Ao ler, recitamos para nós mesmos com ritmo, emprestamos cadência ao texto. A memória auditiva é uma linha direta para o passado. Uma vez reencontrados, os acordes das palavras produzem arrebato, emoção, memórias, como naquele gol. Pelos ouvidos, somos sequestrados para um tempo que não pensávamos que ainda podíamos sentir.
Mesmo que não se tenha mudado de país, de língua, possui-se uma “língua mãe”, constituída pelas vozes dos parentes, pelas propagandas antigas, as músicas da época. As expressões verbais da infância e da adolescência soam mais eloquentes.
Somos datados: o som da língua é nosso Carbono 14, só as vozes do passado são sentidas como próprias, autênticas. Essa é uma das dificuldades da longevidade de que nos beneficiamos hoje: como viver tantos novos tempos, que soam tão diferente, sem sentir-se estrangeiros?
Dias atrás, uma amiga falou ao telefone uma expressão em ídiche que não escutava desde que perdi minha avó. Outra avalanche de memórias, arrematadas por mais um som: a gargalhada gostosa daquela senhora que nunca terminava as piadas. Ríamos era dela, que ria às lágrimas e sufocava o final.
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