A condenação de Dirceu será a admissão de que somos um país de hipócritas, uma democracia de araque
MUITO GENTIL, a desconhecida interrompeu minha leitura para trocar amenidades. Falou-me do Pacheco Pafúncio, meu cão e personal trainer que foi ter com o Criador, e depois fez um cafuné no Ziggy e me contou um pouco da história do bairro e da sua também. Ficamos ali muito entretidas até que, de súbito, ela anunciou: "Sou a Maria Victória Benevides".
Ora, como não? Estou acostumada a descer o sarrafo na professora da USP neste espaço. Creio que não exista um pensamento seu do qual eu não discorde diametralmente.
E, no entanto, ela não se furtou de conversar comigo e de se dizer minha leitora. Tapa de luva de pelica? Não importa. Tomei como exemplo de urbanidade e elegância.
Por que conto isto agora se já se passou quase um ano do nosso encontro? Veja: uma democracia leva séculos para se consolidar. É ilusão pensar que a nossa já esteja funcionando sem risco de fissura estrutural. E é de se perguntar se alguns de nossos ministros do STF se dão conta de que estão julgando para a história.
Porque se a intenção for dar prosseguimento ao projeto de fazer deste país uma democracia moderna, não parece que o melhor caminho seja o berro e a simplificação.
Não entendo nada de leis, mas vejo que, dos 38 réus, por mais que alguns me causem urticária, nem todos são políticos. Por que os dois camaradas do banco e aqueles publicitários pérfidos estão sendo julgados no STF? Condenados, recorrem a quem, ao papa? Isso é Justiça que se preze? Isso é juiz herói? Isso depura a democracia? Ah, sei. Como depurou no caso Collor, não foi? É verdade. Esqueci que estamos bem melhor depois do impeachment, mudou tudo de lá para cá, inclusive porque descobrimos quem matou PC Farias e baixaram as comissões dos negócios escusos em Brasília, não é? E o Lindbergh Farias virou Dalai Lama, foi isso.
Punições exemplares raramente surtem efeito, menos ainda quando há clima de vingança no ar. E a condenação do ex-chefe da Casa Civil, não importa o julgamento pessoal que façamos dele, se houver, será caminhar no sentido inverso ao pretendido. Se Dirceu for condenado, estaremos declarando Lula culpado. Ao fazer isso, forçosamente admitiremos que somos um país de hipócritas em uma democracia de araque, uma vez que o sistema de governo que nos conduz desde a abertura (ou mesmo antes dela) não passa de uma grande farsa com farta distribuição de cargos, comissões arranjadas, concorrências fraudadas, contratos subfaturados, emendas acordadas para acomodar interesses escusos e tudo mais que já sabemos.
É preciso punir? Nem se discute. Mas punir de qualquer jeito, só porque sabemos que há desvio, não corrige. Há formas mais justas e prudentes de encaminhar nossa democracia.
Torcer e comemorar a punição da turma do mensalão, sem observar a lei e esquecendo de outros arranjos entre grupos criminosos dentro da administração pública ou de como surgiu a primeira denúncia contra o governo Lula, são manifestações do cancro que tomou conta do organismo.
Por falar em torcida, lamento decepcionar as macacas de auditório do Contardo Calligaris, mas citar estudo de cansaço do autocontrole para falar de dependência e internação é como se referir à página do índice do "Manual do Onanista" tentando encontrar a solução para taras sexuais. Sobriedade tem a ver com conscientização, não com força de vontade, caro Calligaris.
Será preciso desenhar para você a dura realidade de que o discurso da psicanálise não serve para tratar dependência? Ufa!
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