Sorte teve Paulo Francis. Deus me livre do flagelo de colocar minha decrepitude a serviço do inimigo
O FATO: a meia-idade não é um termo usado para definir quem está na metade da vida. Anglicismo, "meia-idade" ("middle age") identifica basicamente quem já meteu a botina na porta da velhice com força máxima. Não é o meu caso. Ainda tenho muito querosene a queimar antes de ser atirada do penhasco feito a vovó dinossauro do seriado de TV.
Mesmo assim, nos últimos tempos tenho visto gente gasta por toda parte. Inclusive no espelho. E acabei chegando à conclusão de que não há quem não envelheça mal.
Rabugice, falta de sociabilidade, excesso de método, esquisitices: o pacote de ruindades oferecido aos que ousam desafiar a ordem natural (deveríamos sumir aos 30 anos, não é isso?) pode ser mediano ou conter bônus extra na forma da imobilidade, esquecimento ou na aquisição das feições do sr. Beiçola. Fato está que não existe animal, vegetal ou mineral que não fique um pouco mais chatinho na medida em que a quilometragem avança.
Nesta semana, Gore Vidal foi ter com o Criador. Engraçado, inteligentérrimo e um "raconteur" dos mais saborosos, ele soube juntar a pesquisa histórica e a fofoca cabeluda como se ambas tivessem sido criadas para dançar juntas o tango.
Que ninguém nos ouça: Gore Vidal envelheceu mal. Pessimamente, diria. Sujeito escreveu "Burr" e "Myra Breckinridge", realizou uma das biografias mais elogiadas de Abraham Lincoln de que se tem notícia e ainda descarnou a América em seis volumes. E acabou a vida tecendo banalidades sobre o futuro do Império e pegando no pé da extrema-direita como se fosse um transviado irritadinho do Twitter. Sorte do Paulo Francis ter morrido no auge. Já imaginou colocar a decrepitude a serviço do inimigo, como Vidal se dispôs a fazer com George W. Bush?
Conheci Gore Vidal em São Paulo nos anos 1980. Tomamos um porre (posso ter sido só eu, quem sabe), demos muita risada, ele comportou-se comigo como um verdadeiro gentleman. Fui convidada para um jantar na casa de estrangeiros que fundaram a Chácara Flora e, ao chegar, encontrei uma situação insólita: um grupo animado de brasileiros conversava em um ambiente (quem conduzia a prosa era um decorador muito festejado à época) e em outra sala, sentado sozinho olhando uma lareira sem combustível, havia um senhor que eu imediatamente reconheci: Gore Vidal. Isso mesmo, sozinho. Sem ninguém ali para servir nem sequer uma Coca.
Sabe como é, brasileiro começa a noite falando inglês e logo desanda. Não dá meia hora já conta a primeira piada em português e nunca mais ninguém presta atenção no chato do gringo.
Eu não perdi tempo: "Mr. Vidal, it's an honour..." O papo fluiu, ele conhecia um tio meu (ambos moravam na Itália, ele e meu tio) e a coisa rolou e ficamos todos muito felizes. "A Barbara está tomando conta daquela bicha velha americana -ela veio com você?" e pronto, tudo resolvido. Como sempre a egoísta da grã-finada se arruma.
No dia seguinte, Vidal deu palestra no auditório no Masp e eu fui lá, com meu livrinho debaixo do braço. Se quiser ver o autógrafo, entre no meu Instagram, @bgancia. A dedicatória diz assim: "Barbara (who has forgotten that weekend in Long Beach), Gore Vidal". Pena que eu não lembre mais da piada. Mas tinha a ver com o fato de que, segundo ele, Long Beach seria o lugar mais de quinta dos EUA e ele tinha me achado chique ou algo assim -eu acho. Em todo caso, agora que bateu os "penny loafers" não há mais como especular. O que é certo é que a memória começa a me pregar peças.
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