O ESTADÃO - 24/06
Mal começado, o século 21 trouxe uma surpresa histórica: Lula se aliou a Maluf. O arco se fecha, e queima-se um bom candidato à condução da megacidade de São Paulo, capital financeira e cultural do País. Era só o que faltava para a caracterização completa dessa "república de coalizões" estapafúrdias, com seu futuro redesenhado nessa semana a partir da maior metrópole do País. Hoje, que significa mesmo ser republicano?
Encerra-se um ciclo histórico, deixando para trás as esperanças de efetiva e sólida renovação político-social por conta do líder operário que nos anos 1970 pusera paletó e gravata para encontrar-se, a pedido, com o chanceler alemão Helmut Schmidt no hotel Hilton, centro de São Paulo, e explicar-lhe a nova era e o novo sindicalismo, o que impactou o sistema civil-militar de então. O mesmo bravo líder que enfrentou a ditadura a partir da "república do ABC"; o paciencioso torneiro que disputou - até ganhar! - eleições presidenciais contra forças de herdeiros da ditadura, da mídia e do capital financeiro e, vencedor, encarnou a vanguarda das lutas sociais na América Latina; esse líder não conseguiu fugir ao modelo autocrático-burguês. Pena.
Qual a lógica da política na terra bandeirante? Será possível fazer-se uma análise crítica das forças políticas que comandam a cidade desde, digamos, os tempos da ditadura e dos prefeitos biônicos até hoje? De que maneira os grupos econômico-financeiros, empreiteiras e respectivas forças políticas se revezaram na briga pelo poder? E o que tudo isso tem a ver com o modelo caótico de cidade que temos hoje? Não parece haver dúvidas sobre a importância da disputa municipal deste ano nas futuras eleições presidencial e estadual, sobretudo quando se recorda que o PT, como o antigo PTB e o atual PDT, sempre tiveram dificuldades eleitorais neste Estado e nesta anticidade. Desafio para todos, inclusive para a presidente Dilma, que vai melhorando em sua caminhada, sobretudo quando guarda alguma distância dessa sombra que não quer calar.
A galeria dos ex-prefeitos paulistanos ostenta de tudo, em termos humanos e de interesses do capital. Nossa urbe, marcada pela preocupação com o bem comum (o "ben comun", como se lê nas Atas da Câmara já no século 16) e os interesses da coletividade, teve fortes lideranças, desde o Morgado de Mateus (1765-1775) até o verdadeiro estadista que foi Prestes Maia, já no século 20, estudado pelos eruditos Benedicto Lima de Toledo e Candido Malta Campos, este em sua obra fundamental Rumos da Cidade. Ao revisitarmos a galeria dos ex-prefeitos, sem preocupação de arrolamento, nota-se que alguns são destacáveis (Faria Lima, Olavo Setúbal, Mário Covas, Luiza Erundina, Marta Suplicy, José Serra), outros "esquecíveis" (Jânio Quadros, Adhemar de Barros, Celso Pitta, Paulo Maluf). Mas convidemos o (e)leitor a avaliar o que cada um/uma representou ou ainda representa.
Na atualidade política, dizem os incautos ou muito espertos que direita e esquerda são definições que já não têm sentido. Carentes de leitura de livros, revistas e do mundo contemporâneo, lhes bastaria constatar as diferenças na França entre os projetos de um François Hollande e uma Marine Le Pen, ou no Brasil, entre os de Covas e Pitta, ou entre os de Maluf e (digamos) Lula.
O problema é que, de tempos em tempos, a capital paulista gera quasímodos políticos como Paulo Salim Maluf, um dos pilares da ditadura de 1964. O ex-governador, ex-candidato à Presidência da República e ex-prefeito de São Paulo (as ossadas de Perus não permitem esquecê-lo), nessa aproximação com o ex-presidente Lula com vistas à eleição municipal para escolha do novo prefeito da maior cidade da América Latina, obriga o cidadão minimamente ético e atento à História e a nossa vida política e social a se perguntar se não estamos vivendo mais uma ficção de mau gosto. Nesta agora cidade-pânico, penso no cidadão ativo que se recusa a ser alvo daquela frase ácida de Raymundo Faoro, quando dizia que "o Brasil é um país de otários", uma sentença dura do girondino radical, mas que se atualiza cada manhã ao tomarmos conhecimento do noticiário nacional, ou tentarmos entrar em um metrô (digamos, a Linha Vermelha, de Itaquera à Barra Funda), ou simplesmente atravessar a rua na faixa de pedestres. O problema é que o girondino gaúcho não logrou ensinar a radicalidade responsável ao seu amigo pernambucano, que deveria ser adotada como estratégia e referência em face dos "donos do poder". Ou seja, do patronato político brasileiro, incluídos os últimos lamentáveis ministros das Cidades, no ministério hoje nas mãos do PP de Maluf. Pobres cidades brasileiras.
Neste país de amnésicos, vale recordar o velho Marx, pois do PT, um partido de esquerda, poderíamos esperar tudo, menos a aliança Lula-Maluf. Marx dizia que, ao longo da história há fenômenos que podem se repetir: na primeira vez, ocorrem como tragédia; na segunda, como farsa. Historicamente, na prática, Paulo Maluf contradiz Marx, pois a primeira vez que ocupou posto público foi farsa, a segunda também, a terceira idem, e assim sucessivamente, até essa semana de sucesso. Mas Marx nunca foi bem lido por eles, ou talvez nem sequer lido, e muito menos pensado, sobretudo em suas páginas incômodas sobre os lumpesinatos - de onde provêm a massa dos eleitores de Maluf - que, despidos de ideologia ou filosofia, topam qualquer parada e constituem um freio para o avanço da História.
Como explicar o que aconteceu essa semana em São Paulo, senão pela confluência, para fins eleiçoeiros, de duas lideranças populistas para puxar as massas de seus respectivos eleitores? De uma parte, as gentes de Maluf, liderança que mobiliza moradores da periferia - muito menos do que se imagina, talvez Marta mobilizasse mais -, mas também segmentos da pequena burguesia, o curral decrescente e disperso de desavisados, "despossuídos" e politicamente deseducados. E, de outra parte, os eleitores de Lula e do PT, que, apesar das crescentes defecções, compõem o contingente daqueles que creem que seu carismático líder, historicamente importante, ainda representaria a possibilidade de superação, via reforma, do capitalismo selvagem e da redenção dos trabalhadores. Ou seja, da fração da classe operária que subiu ao paraíso, como espera subir a fração mais abaixo, que aguarda sua vez (e a inadimplência) na antessala das agências de automóveis.
Enfim, uma obra de antiarte política, o encontro Maluf-Lula, que nem a burguesia mais esclarecida e empenhada poderia imaginar, muito menos arquitetar um símile competidor em suas hostes. O resultado, convenhamos, é a massificação bruta de nosso capitalismo periférico, em que tudo vale nada. E que acelera o processo de deseducação cívica e política dos jovens, o desencanto dos maduros e a descrença dos democratas nos valores do socialismo reformista. Nesse processo, desceram pelo ralo o contrato social, as lutas de classes ("apagadas" justamente no período dos governos Lula), da cidadania pura e dura, das visões progressistas de mundo e de política. Enfim, dos valores humanistas. Recorde-se que Chico de Oliveira, um dos ex-fundadores do PT, já concluíra em 2006 que "o papel transformador do PT se esgotou" (Folha de S. Paulo, 24-7-2006, p. A-12). Naquele mesmo ano, o conservador liberal Claudio Lembo sentenciava: "Lula não tem tendência a ditador. É um operário do chão de fábrica. Conhece a vida de verdade. É um pequeno burguês, apenas isso" (Folha de S. Paulo, 31-12-2006). Após o levante do PCC em 15 de maio daquele ano, em que a sociedade civil paulistana se acoelhou, a "paz" voltava a reinar na capital do capital no Brasil.
A recusa da ex-prefeita Luiza Erundina em participar dessa aproximação com Maluf vem reforçar a tese de que, neste país velho e periférico, o "novo" não é novo, e nunca foi. Rapidamente, o supostamente novo ficou velho, correndo de costas em direção ao passado, como se vê na foto histórica, com o candidato Fernando Haddad sem graça entre dois Poderosos Chefões, foto antes inimaginável. A combativa ex-prefeita Erundina, com sua recusa em participar do jogo, demonstra que o pragmatismo rasteiro não pode passar por cima de valores éticos, na política como na vida. Convidado em seguida para o posto, Pedro Dallari optou por trilhar o mesmo caminho da ex-prefeita.
O fato é que a socialista paraibano-paulistana criou um forte lema para a nova sociedade civil brasileira: "Não aceito". E pôs em alerta seu próprio partido, que vem crescendo e conquistando papel importante no cenário nacional. Que ele só terá a ganhar com tal recusa, o tempo dirá. As lideranças burguesas nacionais e as dos trabalhadores, sobretudo aquelas pessoas cidadãs preocupadas com o ethos, a transparência e o mores positivo em política e na formação de um Brasil democrático, republicano e moderno, têm agora uma possibilidade de interlocução com gente de respeito. Quanto ao PT, terá que rever o lugar da ex-prefeita Marta Suplicy no quadro local e nacional; e o PSB de Eduardo Campos, de reavaliar o valor da ex-prefeita Luiza Erundina. Do mesmo modo, os outros partidos, sobretudo o PMDB, que não podem continuar a ter esse papel de vala comum dos descorados camaleões.
Na metrópole paulistana, testemunha-se nos dias atuais o fim da História. Mais precisamente, de uma certa e bela História, que alimentou as expectativas e siderou corações e mentes (lembram-se dessa expressão?) de três ou quatro gerações. Não se trata, está claro, do fim da História de Francis Fukuyama, ideólogo de sucesso e garoto-propaganda de um capitalismo predatório "avançado" e desistoricizante. Ou seja, daquela forma de organização econômico-social que só poderia dar no que deu, mas que gerou a reação social e político-ideológica positiva que resultou na eleição de Barack Obama - uma liderança bem formada política, cultural e ideologicamente. No Brasil, o momento é de desilusão das gerações, mas como a História continua, há que se buscar sinais de novos tempos, de uma nova era.
Como analisar tantas expectativas hoje frustradas? Neste país de tradição colonial, talvez a ascensão de Lula e o crescimento do lulismo possam ser entendidos por conta do velho gosto aristocrático pelo popular, cultivado até por frações da alta burguesia e de classes médias ascendentes, um "apreço" genérico por operários, sobretudo se qualificados e bem pagos. Operários que não tivessem seus macacões sujos de graxa, que fossem conversáveis (e conversíveis) como Lech Walesa, o polonês do Solidariedade. Tal "apreço" lembra os abraços que o grande abolicionista e aristocrático Joaquim Nabuco dava nos militantes negros, eventualmente convidados a subir em seu palanque, mantendo, porém, ligeira distância.
"Tudo que é sólido se desmancha no ar", sabemos hoje. E os carismas e populismos, como o de Jânio Quadros, também se desfizeram com o tempo, por inconsistência. Hoje, ouvem-se os aplausos de plateias que, deseducadas e mal formadas, eventualmente também são atraídas pela musicalidade da "canção nova" e pela singeleza ideológico-teológica de padres-cantores e pregadores espertos. Amanhã, quem sabe isso mude.
Nesta terra de carismas fáceis e "miséria farta" (como diria Anísio Teixeira), em que a modernidade vem sendo adiada com método, "conciliação" e rigor, talvez estejam sendo geradas, em algum canto, novas visões de mundo, lideranças e mensagens menos simplistas e grosseiras sobre o que vem a ser política, sociedade, cultura. Pois a História continua.
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