O ESTADÃO - 04/03/12
Não sei com que idade morreu o meu avô materno, Vicente Volpe. A lembrança que tenho dele é a de um homem empertigado, sempre elegante e perfumado, que não perdera seu sotaque de imigrante. Viera de uma cidade perto da Calábria, e desconfiávamos que a imprecisão geográfica escondia seu medo de ser identificado como calabrês, com tudo que tradicionalmente e nem sempre corretamente caracterizava a região, desde a prevalência da Máfia até a ardência da linguiça.
Vicente Volpe casou-se com Emma Halfen Volpe, filha de imigrantes alemães, e tiveram quatro filhos, duas mulheres e dois homens. Uma das mulheres veio a ser minha mãe.
O “vô” Volpe, como o chamávamos, era maçom. Sua última profissão foi a de caixeiro-viajante, no tempo em que os caixeiros-viajantes usavam guarda-pó branco para proteger a roupa da fuligem e das fagulhas das locomotivas. Não havia vergonha maior, para um caixeiro-viajante, do que perder o trem.
O “vô Volpe” contava que certa vez chegara na estação quando seu trem já tinha partido. Escondera-se no hotel, onde ficara, sem comer e sem aparecer na janela, até a manhã do dia seguinte, para escapar da troça impiedosa dos outros caixeiros-viajantes. Mas também contava que perder o trem só lhe acontecera uma vez na vida. Se não me engano, o que o “vô” Volpe vendia em todo o interior do Rio Grande do Sul era lápides para túmulos.
Por que estou contando tudo isso? Porque na velhice, com os seus – imagino – 70 e poucos anos, o “vô” Volpe começou a recuperar o cabelo que perdera a partir dos 40. Primeiro, uma leve penugem, depois fios de verdade, inconfundíveis, brotaram no topo da sua cabeça. Ele não chegou a ter uma neo-melena penteável, que tapasse toda a careca.
Mas é provável que se vivesse mais um pouco teria de volta todo o cabelo da juventude. O que explicava aquilo? A “vó” Emma nos assegurou que não era nenhuma loção mágica. Estrume, pó de gafanhoto, nada. Talvez o fenômeno fosse mais comum do que a gente imaginava. Mas não conhecíamos ninguém na idade dele que estivesse recuperando cabelo com a mesma velocidade e no mesmo volume. A única explicação era: milagre.
Anos depois, pensando no “vô” Volpe, e antes daquele filme em que o Brad Pitt nasce velho e morre bebê, escrevi uma história assim: um vovô começa a recuperar não só o cabelo da sua juventude mas a própria juventude, e regride até a infância, infernizando a todos com suas malcriações. Lembro que a história termina com a família reunida para combinar o que fazer com o velhinho, e uma filha dizendo:
– Vovô, vai brincar lá fora, vai.
Gosto de pensar que, com um pouco mais de vida, o “vô” Volpe, que era, como se dizia na época, mas não na frente da “vó” Emma, um namorador, também ganharia uma segunda juventude. Com todos os cabelos.
E tenho pensado muito no “vô” Volpe porque estão nascendo cabelos na minha careca. Está bem, ainda é cedo para saber no que vão dar. No momento parece que se encaminham para uma espécie de punk geriátrico, mas tudo pode acontecer. Confio na força calabresa dos genes do “vô” Volpe.
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