FOLHA DE SP - 04/03/12
Pensei no que seria de minha vida se meu pai não tivesse decidido ir tentar a vida na cidade grande
Hoje é domingo, e penso: e se não existissem os jornais? E se não existisse televisão, nem internet, nem cinema, nem telefone? Nem rádio?
Fico imaginando como era a vida dos nossos avós, que não tinham nada disso. Então, faziam o quê? Conversavam, talvez, mas os assuntos deviam ser poucos. Sobre o vizinho, que tinha saído mais cedo do que de costume, sobre a cozinheira, que não acertava o ponto do bolo, sobre o filho, que não tinha trazido o boletim para assinar.
A vida era diferente; havia tempo para as famílias, um resfriado era um grande assunto, e como os interesses dos homens e das mulheres não eram iguais, os casais não se falavam nem nos aniversários, nem na casa, nem na cama. Mas as mentes trabalhavam, mesmo que ninguém compreendesse muito bem o que estava pensando -até porque não se usava pensar.
Minha família por parte de mãe era grande, e meu avô, italiano; no total, eram 12 filhos vivos, nove mulheres e três homens (sete haviam morrido). Outro dia, revendo "Amarcord", lembrei de um tio, Hugo, que era igual a um dos personagens do filme de Fellini.
Hugo nunca estudou nem trabalhou nem conversou com ninguém; passava os dias jogando sinuca no bar, acordava tarde, chegava depois que todos já haviam jantado, e o melhor pedaço de frango era sempre guardado para ele, que era servido pela mãe. As irmãs morriam de medo dele, que se soubesse que alguma havia sido vista conversando com um rapaz, levava uma surra.
Surra mesmo, e minha avó -de quem nunca ouvi a voz-, já viúva, não dizia nada. Ele nunca namorou, nunca se casou e, puxando pela memória, não me parece que fosse gay. Aliás, em Cachoeiro do Itapemirim, onde moravam, só existia um gay na cidade, que se chamava Nacife. E também uma louca, a Rainha das Flores, sempre de chapéu, exageradamente pintada, com rouge cor de rosa nas faces e muito pó de arroz, que andava pela rua falando e cantando sozinha -puro Fellini.
O que se passava na cabeça de Hugo? E na cabeça de minhas tias, que precisavam se casar -era a única saída-, que apanhavam, mas não se revoltavam, e namoravam escondido?
Uma delas era diferente; por acaso, a mais velha de todas. Ela nasceu em 1900, ficou noiva de um caixeiro viajante que um dia sumiu e foi ser professora primária. Para lecionar -que palavra antiga- no grupo escolar, ia todos os dias, a cavalo, ensinar as crianças a ler.
O tempo passou, minha avó morreu, ela foi morar com uma das irmãs, já casada e com filhos. Ajudava em tudo o que fosse preciso, sem jamais reclamar de nada, sem um tostão de seu.
Quando tinha 90 anos, conseguiu realizar seu sonho: foi aposentada e passou a receber uma pensão que não era nada, mas para quem nunca teve um centavo, era muito. Ela se sentiu, de repente, rica.
Mas por que estou falando dessas coisas? Acho que porque acordei, lembrei desse tempo, sei lá por que, e me veio uma angústia só de pensar que podia não encontrar o jornal na porta; pensei também em Cachoeiro, e no que seria de minha vida se meu pai não tivesse decidido sair de Vitória para tentar a vida na cidade grande, o Rio de Janeiro, capital da República.
E o que teria sido de mim, se não tivesse tido um pai como o meu.
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