segunda-feira, março 26, 2012
Segurando vela - JOSÉ DE SOUZA MARTINS
O Estado de S.Paulo - 26/03/12
A primeira vez em que fui ao cinema do meu bairro, aos 5 anos de idade, foi para "segurar vela" para minha prima. Ela e o jovem do açougue, onde comprava carne para minha mãe, estavam "tirando linha". "Tirar linha" era a etapa mais preliminar do interesse recíproco entre homem e mulher. Creio que era expressão dos agrimensores que, olhando pelo teodolito, de longe, tiravam a linha de retificação de ruas e medição de terrenos. Era olhar a distância, dando a entender interesse pela outra pessoa. Era o telégrafo sem fio das paixões que nasciam.
O relacionamento visual podia evoluir até o namoro na porta da casa da moça. Ou acabar antes de começar. Era um processo demorado e sofrido, até que a donzela obtivesse do pai consentimento para alguma proximidade. Depois de um tempo, o namoro passava para dentro de casa, na sala de visitas, com alguém "segurando vela", geralmente a mãe, que disfarçadamente fazia tricô ou bordava. "Segurar vela" queria dizer que, mesmo não havendo vela nenhuma, a acompanhante tinha a função da vela bem acesa para o namoro "às claras". Nada de escurinho e privacidade.
O namoro não podia evoluir nem muito depressa nem muito devagar. Muita pressa significava que, apesar da vigilância, o moço avançara o sinal. A pressa era jeito da moça ainda casar vestida de branco, sem "dar na vista". Mentia-se "pelas costas", fazendo de conta que não se notava o ventre crescido, que chamasse a atenção de vizinhos e linguarudos. Fingimentos em nome da honra. E se o rapaz tardasse em formalizar o casamento era namorado aproveitador, empatando o tempo da moça, tempo de "encontrar outro e melhor".
Intuí o básico dessas regras na mera tarde daquele domingo de minha primeira ida ao cinema. Quando o moço veio buscar minha prima, meu pai disse-lhe que mandasse o rapaz entrar. Ela morava conosco e meu pai cumpria as funções do pai falecido. Estava muito bravo, ou fingia estar. Interpelou o donzelo, ralhando. Ele saltara etapas do teatro da honra: fora diretamente do "tirar linha" para o "convidar a moça para o escurinho do cinema", sem respeitar as etapas intermediárias. Ansioso para resolver a coisa em tempo de ver o filme, o rapaz acabou numa promessa de namoro firme e até de casamento. Vestiram-me rapidamente o terninho de marinheiro, ridículo traje dos meninos da época.
E lá fomos nós de mãos dadas para o primeiro filme de minha vida. Na verdade, para segurar vela para a prima. Na entrada, o moço comprou ainda balas para a namorada. Chegamos quando a sessão já havia começado. Passava o trailer de um filme em preto e branco: um homem carregava um menino nos ombros e cantava: "Upa, upa, cavalinho alazão!" Depois, o filme, um desenho animado: Alô, amigos, de Walt Disney. Quando as balas acabaram, dormi. Sorte deles: a vela apagara.
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